o senhor presidente, a esposa e o amante dela
Não me venham com essas caganifâncias de ecologista canhoto, de que aquela erva é única no mundo, também os meus cagalhões são únicos, nunca fiz dois iguais, e não os ando por aí a guardar em bonbonnières da Vista Alegre, era o que dizia, e ninguém o contradizia, o Senhor Presidente da Câmara sempre que lhe vinham com protestos sobre a urbanização descontrolada em área protegida. Senhor Presidente hoje, preste-se-lhe esse tributo, com estátua equestre erigida no largo do município onde, todos os anos pela mesma data, lhe é
imortalizada a obra e recordada a morte, a apoplexia deu-lhe forte e fulminante, apagou-se de um minuto para o outro, no exacto momento em que presidia à cerimónia de abertura do novo cemitério, foi ele quem o inaugurou em vida, foi ele quem o estreou na morte, à placa comemorativa que descerrou seguiu-se a lápide com o epitáfio que o incensou, paz à sua alma e a eterna saudade dos seus pares nos negócios, nas negociatas cúmplices e nas trapaças sócios, não é o que lá foi escrito mas podia muito bem ter sido.
imortalizada a obra e recordada a morte, a apoplexia deu-lhe forte e fulminante, apagou-se de um minuto para o outro, no exacto momento em que presidia à cerimónia de abertura do novo cemitério, foi ele quem o inaugurou em vida, foi ele quem o estreou na morte, à placa comemorativa que descerrou seguiu-se a lápide com o epitáfio que o incensou, paz à sua alma e a eterna saudade dos seus pares nos negócios, nas negociatas cúmplices e nas trapaças sócios, não é o que lá foi escrito mas podia muito bem ter sido.
Foi um mortório lindo de morrer, digno de se ver, nem o Senhor General Carmona teve um assim. Que digo eu? Nem Craveiro Lopes, marechal, nem Duarte Pacheco, engenheiro, nem Júlio Dantas, escritor, nem Palmira Bastos, actriz, nem Tomás Alcaide, cantor, aponte-me o leitor o passamento de qualquer personagem imorredoira, doutor, professor, professor doutor, seja ele quem for, ou por outra, quem tenha sido, e seguirei jurando a pés juntos e à fé de quem sou que como este não houve igual, sobre este assunto estamos entendidos, ficamos conversados. Foi decretado feriado municipal, o comércio encerrado, as ruas engalanadas com pendões pintados de preto e prata, colchas roxas penduradas pelas janelas, varandas e janelas avarandadas ao longo de todo o percurso, da igreja, onde o corpo jazeu em câmara-ardente durante três dias e três noites, até à derradeira morada. O esquife, tapado com a bandeira da União Nacional, foi acarretado numa carruagem preta e dourada puxada por oito cavalos puro-sangue de cor preta, nucas enfeitadas com penachos pretos, garupas arreadas com gualdrapas de lustrina ouro e púrpura, o cocheiro de libré preto, bicorne e marrafa em liça, o equilíbro era precário, num tem-te-não-caias risível mas, em compensação, as suíças oitocentistas e o bigode fernandino conferiam-lhe a mais digna solenidade. Seis mestres-de-cerimónias, seis mestres-de-obras de profissão e réditos, vestidos com a farda da Legião, trasladaram o féretro para o mausoléu exalando carpidos, arquejos, um último suspiro, o desgosto era grande, a perda era enorme, o Senhor Presidente pesadote, o caixão, de madrona e ouropel, uma excentricidade, um gasto perdulário, um carrego desnecessário. A comborça, convivente do falecido desde há vinte anos assaz proveitosos, em pranto, deitava contas à vida, a vida a andar-lhe para trás. A viúva, de beicinho e pelo beicinho por um aprendiz de cabouqueiro com menos de metade da sua idade, recebia as condolências de olhos lacrimosos, fazia olhinhos ao futuro consorte e pensava no pegulho que aí vinha, o jeitão que ia dar para as segundas núpcias, desejosa estava ela, tomara que fosse já hoje, mesmo que tivesse de recasar coberta de luto da cabeça aos pés, assim como assim os intervenientes, convidados, penetras, nubentes, celebrante, estavam ali todos, matavam-se dois coelhos com uma só paulada e porque, em dia de exéquias, qualquer folia ou fartança seria sacrilégio por todos malvisto, atearia a maledicência, causaria indignação, libertaria a má língua que todos temos dentro de nós, poupava-se no copo-d’água e a viúva-noiva, inconformada como estava, poderia recolher ao quarto mais cedo, sem que se bispasse nisso laivo de impudícia ou pelo extinto menor apreço, levada em braços e aos ais e uis pelo seu jovem esposo que, solícito, a estenderia no mesmo leito onde, ainda não há muitas luas, o gasalhoso era outro, mais mascavado e pançudo, menos abrasado também, rei morto, rei posto, infelicidade é para quem por cá fica, inconsolável, de alma e coração dilacerados, amargando o seu calvário de saudades, palavra esta portuguesa de gema, não há quem a não use e a não sinta, de nostalgias sabemos e sofremos nós, a uma só voz, num único fadejar.
Veio um mar de gente, foi um mar de lágrimas, viu-se um mar de flores, pétalas a remoinhar, lenços a acenar, a viúva, o padre e o aprendiz à frente do cortejo, nem na Cova da Iria em dia de procissão se viu coisa assim, guarda de honra, salvas de artilharia, dobres de finados, elogios fúnebres, era tão boa pessoa, tão amigo do seu amigo, tanto que eu lhe devo, tão caridoso que ele era, vai-nos fazer tanta falta, o País ficou mais pobre, menos rico o município, nada voltará a ser como dantes, coitadito, já lá está. O venerando Presidente de todos os presidentes, o da República, é que, acabadinho de chegar de uma romagem a Fátima não pôde comparecer, quem lá vai, lá vai, a vida continua, o que é preciso é enterrar os mortos e pugnar para que aos vivos nada lhes falte, mas mandou, diga-se em abono da verdade, uma mensagem de pêsames e um ramalhete de mimosas colhidas à beira da estrada, a caminho de Lisboa, entre Bugalhos e Arneiro das Milhariças.
É para a praça matriz, e não para a tapada dos ataúdes, o velório já lá vai há muito, que acorre todos os anos a turbamulta, elas com véus pretos nas cabeças, eles com fumos negros nos braços, uma banda toca um requiem no coreto, uma tuna entoa canções à toa, acendem-se velas, lanternas e palmatórias, depositam-se palmas e coroas de flores em redor do monumento ao Senhor Presidente representado em quadrupedante postura, e, afixadas no plinto da estátua com adesivo, fita-cola ou cuspo, com o que se tem à mão ou na ponta da língua, até nisto se vê as posses de cada um, deixam-se preces escritas com reverência e expectativa, havendo esperança há vida, tardará o desenlace, preces apelando ao levantamento de um embargo, intercedei para que Ele atenda o meu pedido, preces solicitando a concessão de uma licença, intercedei para que Ele escute o meu rogo, preces implorando a aprovação de um loteamento, intercedei para que Ele me conceda esta graça, um jeitinho por caridade, um favorzinho por piedade, uma cunhazinha por amor de Deus, pelas almas dos que lá estão Senhor Presidente, e, já que andais aí por cima ao que sei sem fazer nada, sem praticar o bem como o haveis feito na Terra, aproveitai o tempo que, inexaurível, vos é outorgado no reino dos céus e advogai por mim junto de Cristo para que me isente de coimas, impostos, cauções, taxas e emolumentos, me livre de imposições, obrigações, impedimentos e complicações, me safe de vistorias, fiscalizações e alvarás. Para que as minhas súplicas sejam ouvidas e os meus anseios correspondidos rezarei, por Ele faço tudo, pelo Senhor Presidente faço mais, dois ou três Padres-Nossos, não sei quantas Ave-Marias e os credos que forem precisos mesmo que sejam precisos muitos, antes credos do que credores, já lá dizia o outro. Lá onde? Outro quem? Aqui estão duas perguntas que, por agora, ficarão sem resposta. Oremos pois. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim seja.
Tal é a ascendência do falecido taumaturgo sobre a Sagrada Família, também no céu, pelo que se está a ver, se traficam influências e se pedem favorzinhos, se dão jeitinhos e se fazem arranjinhos, que a sua fama foi longe e todos os anos, pela mesma data, autênticas multidões, elas de véu, eles com fumos nas mangas, acorrem à praça da estátua milagrenta, andam a pé, vêm de burrico, viajam na carreira, para o que sobejassem os trocados, uns largam cidades e aldeias, são campaniços, são fangueiros, maçanicos e mafarricos, malcatenhos e mertolengos, mindricos, cascabulheiros, penaguiotas e transcudanos, sulanos e freichonitas, mais os brácaros, albicastrenses, estremocenses e, em maior número, tripeiros, muitos deixam o mar e as fábricas ao abandono, são gafanhões, são varzinos, são nazarenos, e ainda caparicanos, cascarejos, cacilheiros, colarejos e sacavenos, estes aqui de perto, mais os paivotos, os marinhotos, os pacenses, esses de mais longe, outros descem das serranias e desertam as ilhas, são corvinos, são florentinos, picarotos e monchiqueiros, maronenses, geresinos, caramuleiros, e, vá o leitor por mim se para isso lhe der a credulidade, até os oliventinos que, sendo nossos de coração são espanhóis por opressão, passam Badajoz, o Caia, Elvas, Estremoz, ultrapassam a Marateca, e para aqui acorrem também, na esperança de que as assombrosas mediações do Senhor Presidente tenham o poder de galgar fronteiras e corromper o Ayuntamiento e o seu Alcalde.