os aviamentos que deus lhes deu


Não havia cilício capaz de domar a miríade de sonhos desencabrestados que perturbavam o corpo e o sono da Maria Imaculada, qual deles o mais poluto porque nenhum deles se coadunava com os votos de castidade da inflamada, da picante, da capitosa Maria Alice, com dois frades, um arcebispo, quatro padres e cinco freiras na árvore genealógica e no cadastro da família, corista do teatro de revista

na carteira profissional e, na ficha clínica, marcada por um aborto mal feito, lá para os lados da Pampulha, por uma curiosa que levava barato e a ia levando desta para melhor. E aos pais também, ele sargento na reserva, ocupado a delapidar, ao jogo, os rendimentos das duas décadas em que andou a engordar o pundonor pátrio como vagomestre na messe de oficiais de um quartel a Sacavém, ela professora de Religião e Moral, de dia numa casa de correcção, à noite numa colectividade de cultura e recreio nas imediações do Intendente, com sessões de entrada livre interditas a chulos e putas, mais a elas do que a eles porque Jesus pregou a tolerância e os proxenetas, impotentes para escapar aos ardis das fêmeas, não têm culpa se elas os levam pelos caminhos da perdição, os homens têm as suas necessidades e têm o Seu perdão. Os pais, esses, se quase se finaram foi de vergonha que aquela filha, ainda por cima a única que o Todo-Poderoso lhes permitiu conceber num ror de anos de malogradas tentativas, desde pequena só lhes deu desgostos e preocupações. Desde que começou, doidivanas, debochada e delambida, era mais forte do que ela, a granjear as boas graças dos ganapos das cercanias e a servir-se deles como cobaias para os seus aprendizados de anatomia, com aulas práticas, experimentações ao vivo e minucioso exame oral. Sem que nenhum órgão externo e as respectivas funções ficassem por dissecar de fio a pavio e de cabo a rabo. E exigia reciprocidade.
Que malandrice, Maria Alice!
Quanto à sua castidade, falemos de coisas sérias, foi jurada com a mais firme das intenções no dia em que, há muitos anos já, se passou a chamar Maria Imaculada e tomou o compromisso de nunca, nunca mais pecar, fosse por pensamentos, palavras ou obras. Sepultando bem fundo a Maria Alice, que a terra lhe seja leve, a disputada, a escultural, a espampanante Maria Alice, promissora actriz com créditos firmados nos bastidores e nas ribaltas dos teatros do Parque Mayer e dos cabarés da Praça da Alegria, onde os tristes vão espairecer. E, porque precisava de mais uns tostões para as pequenas extravagâncias do seu Fanã – um paz-de-alma, um morte-em-pé, adepto do cunnilingus por requerer menos esforço físico e que tanto se sacrificou por ela ao extremo de, por amor, largar o emprego na estiva e os biscates de trolha para lhe fazer companhia e apajá-la na cama pelas tardes e manhãs –, a disputada, a escultural, a espampanante Maria Alice, que malandrice!, fazia uma perninha num arrojado número de strip tease na sala das traseiras do Cova da Iria, aquela onde os agentes da brigada de costumes, a puta da bófia segundo uns, a bófia das putas no entender de outros, tinham ordens superiores para não enfiarem o bedelho, nem o bedelho nem coisa alguma.
Nem que caia o Carmo e a Trindade, ordenava o capitão Morais com apelos à prudência e ao juízo, muito juízo mesmo, que a chicha exibida nos escaparates não é para vosso pasto, tirem daí o sentido.
Nessas noites de triunfo, a Alice, que malandrice!, despia-se peça por peça com graciosos gestos de vampe do cinema mudo, à Mary Pickford, e, tal como Ele quis que ela viesse ao mundo, tal como ela quis estar no mundo, que o que é bom é para se ver e nunca se viu nada assim, ondulava os seios ao ritmo de umas quantas chansonnettes cheias de malícia, de segundos sentidos, proibidas pela Censura que sempre condenou essas brejeirices malsãs sopradas pelo grão-tinhoso, e rabeava, e rodopiava, e enroscava-se, e lambia-se, e acariciava-se, e bamboleava-se, e saracoteava-se e, depois de uma espargata, duas cabriolas, três piruetas de contorcionista atrevida, das que sabem como pôr a cabeça dos homens a andar à roda, das que sabem da poda, deixava-se contemplar a dois palmos dos narizes dos tais cavalheiros que, acontecesse o que acontecesse, nem que caísse o Carmo e a Trindade, não queriam ser vistos. E que, de bocas salivantes, embasbacados e túmidos diante dessa miragem fulminante da terra prometida, disputavam entre eles o direito de fundear padrão naquele oásis de dunas e desfiladeiros, de conquistar aquele éden de vulva e púbis, de espetar a bandarilha naqueles entremeios de apetite, de penetrar naquele vulcão que, prestes a entrar em erupção, se oferecia latejante, quente e húmido, a saber a maresia, a cheirar a malvasia. Por aqui se vê que, no que toca a instintos, os homens e os cães não diferem uns dos outros tanto como se julga ou diz, cada qual defende a sua coutada como pode, marca território como sabe e, pénis para que te quero, usa como pode e sabe os aviamentos que Deus lhe deu.

Mensagens populares deste blogue

valha-nos santo eucarário!