a partilha, a ganância e como a política está em todo o lado

por Daniel Oliveira


Apesar de não conhecermos hoje forma de viver sem ele, nem tudo é mercado. Se olharmos para a Internet percebemos isso mesmo. Na blogosfera ou na Wikipedia milhões de pessoas produzem e consomem sem que recebam ou paguem por isso. A criatividade veio quase sempre antes de alguém imaginar como ganhar dinheiro com ela. Na arte, na ciência e em tudo o resto.

O voluntariado, a participação cívica, o mutualismo e tantas outras coisas provam o mesmo: apesar de vivermos numa economia capitalista há, ao lado dela, muitas experiências que seguem outra lógica e, mesmo quando não é isso que as motiva, desafiam-na.

Recentemente recorri a mais uma. Curiosamente, vive do excesso. Num grupo virtual (Freecycle ), quem se quer livrar de coisas - roupas, brinquedos, móveis, electrodomésticos - oferece-as e quem as quer só tem de tratar do transporte. Não é caridade, porque nem sabemos à partida se quem recebe não pode comprar. Não é troca por troca, porque nem sempre quem dá recebe. É apenas vontade de não mandar fora o que outros ainda podem usar.

Não é um manifesto político. Mas é o oposto ao consumismo, porque reduz a necessidade quando tudo na sociedade a alimenta. É apenas um ato natural. E essa é a razão porque acho que aqueles que pensam que o capitalismo corresponde à natureza humana (e por isso será o fim da história) estão enganados. As sociedades não se organizam nem pelo altruísmo nem pelo negócio. Caminham pelas duas coisas. E quem vê na ganância a explicação de todos os atos humanos é tão cego como quem acredita que uma sociedade se pode regular apenas pelo desejo do bem. Uns e outros amputam parte do que é ser humano.

Não usei o Freecycle por querer praticar o bem. Não o usei porque queria que que me levassem as coisas - a Câmara Municipal faria o mesmo com menos trabalho para mim. Usei-o porque o instinto de partilhar é, como a ganância, dos mais humanos de todos.

E é esta, e não a falsa dicotomia entre igualdade e liberdade (como se uma não dependesse da outra), a grande clivagem entre a esquerda e a direita (deixemos de fora a direita conservadora, que é apenas anacrónica e que virá a ser, quando os ultraliberais desregularem tudo, aliada natural da esquerda). Uma acredita na comunidade, a outra no lucro. Uma tem mais fé na partilha, a outra tem mais fé na ganância. Mas todos sabem que qualquer dos dois instintos está sempre à espreita. Porque também eu, que partilho, compro e vendo. E quem compra e vende também gosta de partilhar. A questão é apenas o que pesa mais na forma como imaginamos as nossas utopias. Já na vida real, há ilhas de socialismo no capitalismo, como sempre houve ilhas de capitalismo no socialismo.

Claro que se o Freecycle se tornar popular vai haver quem queira ganhar dinheiro com a coisa. Mas ele nasceu antes disso. Como quase todas as ideias. Forçando a nota: o socialismo precede sempre o capitalismo. A partilha precede sempre a ganância. A criatividade precede sempre o negócio. E é por achar isto, e, claro, não por usar o Freecycle, acrescentar informação na Wikipédia ou escrever em blogues, que sou de esquerda. Porque sei que é em comunidade que evoluímos. A ganância apenas tira partido disso, dividindo desigualmente o que todos nós construímos.

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