o caminho das pedras
Por Nuno Ramos de Almeida
A maioria dos portugueses assistiu a um espectáculo insólito na televisão. Os principais canais transmitiram em directo um apedrejamento durante mais de uma hora do corpo de intervenção que impedia o acesso aos manifestantes à escada do parlamento. Os polícias resistiam estoicamente aos projécteis arremessados por dezenas de encapuzados. A certa altura apareceu um oficial de megafone a ordenar à multidão que dispersasse. Minutos depois a polícia varreu a praça à bastonada.
Na rua ninguém conseguiu escutar o aviso feito para a televisão. Minutos antes da carga, várias dezenas de agentes policiais infiltrados, que tinham estado o tempo todo ao lado dos mascarados que atiravam pedras, retiraram-se. Deus escolhe os seus, a carga policial, essa, abateu-se sobre a parte pacífica da manifestação poupando a maioria daqueles que tinham estado nos confrontos.
A polícia agrediu gente nas vizinhanças de São Bento: moradores, velhos, deficientes, crianças, ninguém foi poupado. Segundo informações recolhidas por advogados, mais de 100 pessoas tiveram de receber tratamento hospitalar. Dezenas de jovens foram presos, alguns em sítios tão distantes como o Cais do Sodré. Vinte e um foram levados para a prisão de alta segurança de Monsanto. Durante horas a polícia recusou informar os familiares do paradeiro dos jovens. Algumas raparigas foram obrigadas a despir-se para uma revista mais aprofundada. Vários jovens foram insultados, tendo sido dito, por agentes policiais, àqueles que garantiram não ter participado nos incidentes que “gente inocente não vai a manifestações”. Foram obrigados a assinar papéis em que as circunstâncias e os motivos da sua detenção estavam em branco. Os detidos de Monsanto não foram acusados de nada. Não estavam envolvidos nos actos de violência, alguns, como um menor com 15 anos, nem sequer tinham ido à manifestação. Durante esse tempo o ministro Miguel Macedo apareceu a dizer que a polícia tinha actuado bem e que os responsáveis pelos incidentes não eram mais do que meia dúzia de profissionais da desordem.
No dias seguintes ficou esclarecido que foi decisão da direcção da polícia não tentar deter os violentos no início dos incidentes e deixar prolongar durante mais uma hora o apedrejamento do corpo de intervenção. Há jornais que garantem que foi o próprio ministro Miguel Macedo que decidiu o momento da carga.
Por detrás desta aparente incompetência em sanar rapidamente incidentes existe uma estratégia: o executivo de Passos Coelho já percebeu que só consegue impor o programa selvagem de austeridade da troika cortando liberdades. Fala-se na limitação do direito à greve a propósito da paralisação dos estivadores, é muito provável que o governo pretenda criminalizar o direito à manifestação. Esta tentativa já vem de trás; houve pessoas que fizeram a conferência de imprensa, junto ao parlamento, da manifestação de 15 de Setembro constituídas arguidas pelo crime inexistente na lei portuguesa de “manifestação não autorizada”, por terem anunciado o protesto na via pública.
Uma nota pessoal: durante os incidentes frente ao parlamento coloquei-me entre os polícias e as pessoas que atiravam pedras, andei aos empurrões com tipos que faziam isso. Pensava que a violência só pode criar mais violência. Não voltarei a fazê-lo.
Nas últimas manifestações há cada vez mais gente desesperada, um sem--número de pessoas que não aguentam a situação em que sucessivos governos deixaram Portugal. Nos bairros dos subúrbios os filhos nunca tiveram emprego e os pais já não têm. Temos uma falsa democracia, em que os manifestantes são espancados mas os antigos responsáveis do BPN, banco em que desapareceram para os bolsos de alguns milhares de milhões de euros, nunca foram presos e tornam-se conselheiros do primeiro-ministro. Portugal é um país com milhão e meio de desempregados. As estatísticas falam de um número recorde de pessoas na pobreza, de gente expulsa das suas casas e sem dinheiro para comer. A violência é filha de um país sem saída. Como querem ter a paz social da Suécia com a miséria da vida da Grécia? Desenganem-se, a guerra está no início e a violência vai encher as ruínas das nossas cidades desertificadas por uma política que serve apenas os poderosos.
Texto e fotografia: http://www.ionline.pt
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