outro desígnio


Por Anabela Fino

Basicamente, Passos Coelho foi à festa do PSD no Pontal dizer três coisas: que os portugueses têm um desígnio nacional a cumprir; que o Governo se prepara para fazer um corte na despesa sem paralelo nos últimos 50 anos; e que o «caminho da conflitualidade» não tem lugar em Portugal pois o Governo anseia por «uma base mais alargada de diálogo social».

Confesso que ao ouvir Coelho – enquadrado por uns jovens que com entusiasmo fúnebre levantavam e baixavam bandeiras sempre que soavam uns mortiços aplausos – me senti de súbito remetida para a sala de estar da casa paterna onde há um ror de anos insistia em ver as «conversas em família» de Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar que tentou fazer crer ao povo português que as ditaduras podem ter primavera.

Salvaguardadas as devidas distâncias, Coelho, tal Caetano, veio dizer que o mundo tem os olhos postos em Portugal porque aqui se está a fazer história com as medidas impostas para resolver a «crise», razão necessária e suficiente – ao que parece – para o País se sentir orgulhoso do seu destino, conhecida como é – ontem como hoje na lógica do poder ao serviço do capital – a atracção fatal exercida pelo estrangeiro sobre os gentios. Dêem-nos um turista e logo nos acotovelamos para lhe engraxar os sapatos, cantar o fado e encher o estômago com as iguarias nacionais. De guardanapo pendurado no braço, evidentemente.

Por isso mesmo Coelho sublinhou que o que se pede a cada português «não é apenas paciência e espírito de sacrifício, é também que consiga, no seu dia-a dia, a noção de que o que estamos a fazer ficará na história da Europa, e na história da democracia».

Pobres mas honrados, fazemos das tripas coração para pagar até ao último cêntimo aos agiotas, morrendo de fome se necessário for para garantir um lugar no céu dos explorados e oprimidos, que como se sabe não é deste mundo.

Ao anunciar cortes sem paralelo nos últimos 50 anos, Coelho não só nos remeteu para o início dos anos 60 como deixou antever o cenário dantesco que nos prepara: qualquer coisa como o regresso às catacumbas do tempo da ditadura depois de termos visto o sol. Para quem já se esqueceu ou nasceu depois do 25 de Abril, nesses anos o trabalho não tinha direitos, o salário era à vontade do patrão, a saúde e a educação eram privilégios dos ricos, só um punhado tinha férias e reforma, uma sardinha dava para três…

Perante um tal cenário, de que apenas se conhece os contornos – Coelho não escondeu que ainda «vamos ingressar no coração, no plano mais duro das tarefas que temos a realizar» – o primeiro-ministro fez um apelo «muito especial» aos parceiros sociais, para que compreendam que «o caminho da conflitualidade que temos visto aparecer em outras sociedades pode ter justificação em cada uma delas, mas não é o caminho» para Portugal. O Governo, disse, quer «diálogo» com os parceiros sociais, no sentido de alcançar um «acordo social mais alargado para os próximos três anos».

Salvaguardadas as diferenças, Marcelo Caetano também «dialogava» com os portugueses: ele falava e nós ouvíamos. Marcelo, recorda-se, até nos dava a liberdade de pensar… em silêncio.

Depois foi Abril. Porque fazer História não é aceitar o mundo, é transformá-lo.

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