pacatos e trabalhadores, poupados e prudentes

Por Daniel Oliveira

A falta de contraditório promove preguiça de quem argumenta. E esta crise é também uma crise de debate. A simplicidade dos argumentos dos advogados da austeridade não resulta da sua evidência. Resulta de um populismo moralista que transforma a economia numa espécie de catecismo sobre as virtudes e pecados nacionais. Como a fórmula resultou os seus praticantes começam a desleixar-se. E pessoas inteligentes, que pelo menos na sua área científica teriam alguns créditos a defender (mesmo que noutras sempre tenham andado próximo do delírio), são capazes de uma surpreendente indigência intelectual.

É o caso deste texto de João César das Neves. E que, apesar da sua infantilidade (ou até por causa dela), resume bem a forma como uma certa elite e um certo espectro político veem a história de Portugal no último meio século. Para César das Neves Portugal era, nos anos 60, "um país pacato e trabalhador, poupado e prudente". Tudo, como se percebe no texto, excelentes qualidades. Que se mantêm. Ainda hoje, enquanto "os dirigentes bramam contra a ditadura do dinheiro e exigem direitos", "Portugal não quer ouvir". "Labuta, amealha, emigra e procura vida melhor noutras terras". Felizmente povo ordeiro não dá ouvidos aos dirigentes agitadores. Segue a sua vidinha. Como os "os seus pais e avós, pacatos e trabalhadores, poupados e prudentes". A ressonância salazarenta deste retrato dos portugueses, tão comum na propaganda de um regime que promovia e elogiava a pobreza e a resignação, só passa despercebida a quem tenha pouca memória.

Para o economista, a nossa história resume-se a ciclos em que gastámos como se não houvesse amanhã e outros em que fomos chamados à realidade e regressámos aos bons costumes. Voltando a ser pacatos e trabalhadores, poupados e prudentes.

Nos anos 60, Portugal não era pacato. Era obediente. Como são obedientes todos os povos que vivem em ditadura. E quem não o era, fugindo à norma nacional, era vigiado, perseguido, preso, torturado e até morto.

Portugal não era apenas trabalhador. Era escravo. O trabalho infantil era uma banalidade, os horários, as férias e os fins de semana um luxo inalcançável. E, no entanto, apesar de se trabalhar para lá da decência humana, em 1961 a nossa produtividade era, como recorda Raquel Varela , muitíssimo inferior à de hoje.

Portugal não era poupado. Era miserável. Morria-se cedo, comia-se mal, não se tinha nem saúde nem educação. Era analfabeto, doente, subdesenvolvido. Quem sabe como era a vida da esmagadora maioria dos portugueses, sobretudo fora das grandes cidades, sabe que é um tempo que não pode deixar saudades. As despesas sociais correspondiam a 4,4% do total do PIB, enquanto no resto da Europa estavam acima dos 10%. O indicadores de saúde eram de um País do terceiro mundo. O número de analfabetos era muitas vezes superior ao dos licenciados.

Portugal não era prudente. Era obstinado no seu conservadorismo. Ao ponto de julgar que poderia continuar a viver como se o mundo estivesse na mesma. O que o levou, entre tantas outras asneiras que nos deixaram para trás, a desperdiçar e destruir milhares vidas e a gastar, em média, metade do orçamento de Estado numa guerra que inevitavelmente acabaria como acabaram todos as lutas pela independência em África: com uma derrota militar ou política do colonizador.

Depois veio o 25 de Abril. O País "criou autarquias e dinamização cultural, comprou frigoríficos e televisões, fez planeamento económico, exigiu escolas e hospitais". Enfim, resume César das Neves, "Portugal gastou". Sim, de 1973 a 1999 as despesas sociais passaram de 8,7 por cento para 26,1 por cento e os impostos de 18,6 por cento do PIB para 34 por cento. E numa e noutra coisa apenas nos aproximámos do resto da Europa. Porque, sem isso, cinco milhões de portugueses continuariam a não ter cobertura médica, a mortalidade infantil continuaria na estratosfera e o analfabetismo continuaria a condenar o País ao atraso. Sim, compraram-se frigoríficos e televisões, coisas banais em qualquer país europeu. Sim, exigiram-se e construíram-se escolas e hospitais. Não foi falta de ponderação. Foi o que fez Portugal dar um dos mais rápidos e extraordinários saltos sociais e económicos na Europa, que qualquer estrangeiro que tenha cá vindo antes e depois notava com espanto e admiração. Foi o que nos permitiu consolidar a democracia e entrar na CEE. Foi das coisas mais ponderadas e inteligentes que fizemos.

Note-se que aqui não discuto o que até é mais do que discutível: se esta crise resulta deste suposto despesismo. Ou se, tese que revolucionará o trabalho de muitos historiadores, entrámos na CEE como prémio por bom comportamento financeiro. Fico-me apenas pelo pacato. Pelo trabalhador. Pelo poupado. Pelo prudente. Fico-me por esta narrativa (a palavra ainda se pode usar?), que corresponde a uma reescrita da história. Que a César das Neves dê jeito, não espanta. Não fosse ele a caricatura risível de uma direita que já não se espera encontrar por aí. Apenas incomoda que haja tantos portugueses que achem mesmo que fomos imprudentes. Que não atribuam a essa suposta imprudência os anos de vida que vivem, o tempo de descanso que têm na velhice, os filhos na escola, os bebés nas maternidades, a reforma, as férias. E essas coisas pouco pacatas que são a liberdade e a democracia.

A "imprudência" de construir um País que não seja um buraco de miseráveis é a única coisa que nos permite falar da pequenez das reformas de quem nunca descontou, porque era suposto trabalhar até morrer. Que nos permite falar dos problemas da escola pública, porque ela já não se fica, para a maioria, pela quarta classe. Que permite que, para muitas portuguesas, parir um filho não seja um jogo de sorte e azar. Que nos permite ver um neto de um analfabeto com curso superior. E estarmos preocupados porque emigra. Desta vez não é a salto, não é para viver num bidonville, não é para ser porteira e trolha. Não é porque "os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos, gostam dele por ser pacato e trabalhador, poupado e prudente". É porque tem formação. É porque cresceu num País que mudou e que passou, como tantas outras coisas, ao lado de César das Neves. 

Se é imprudente tudo o que, como povo, exigimos e fizemos nos últimos 39 anos, talvez seja disso mesmo que estamos a precisar. Talvez a ideia de que o que conquistámos nunca estaria em risco nos tenha tornado demasiado pacatos. Ao ponto de aceitarmos, sem uma pinga de indignação, que nos digam que devíamos ser como "os nossos avós": resignados, obedientes e pobres.

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