um governo de traição nacional
Por José Vítor Malheiros
A história e a política estão cheias de grandes tiradas, de declarações que mudaram o rumo do mundo e que inflamaram o desejo e o sonho de milhões durante décadas ou séculos. “Obviamente, demito-o!” “De l”audace, toujours de l”audace, encore de l”audace!” “We shall fight on the beaches…” “Os proletários não têm nada a perder senão as suas grilhetas!”…
E há também frases aparentemente banais que, por uma conjugação de circunstâncias, conseguem mudar o curso dos acontecimentos. O fim do senador republicano americano Joseph McCarthy foi ditado quando, durante um das famosas audições no Senado, o advogado do Exército dos EUA Joseph Nye Welch lhe perguntou simplesmente, com um ar de profundo desdém, “Have you no sense of decency?” Uma pergunta que bastou para os americanos – havia 20 milhões a seguir a transmissão televisiva em directo – adquirirem a consciência de que aquele arruaceiro pomposo era apenas um pequeno traste à procura de poder. O homem não merecia senão desprezo.
O que é espantoso é como, na actual situação política portuguesa, há tão pouca gente a fazer a mesma pergunta a todos e a cada um dos membros do Governo português, de cada vez que abrem a boca, quando é tão evidente que essa gente é apenas, como McCarthy, um bando sem escrúpulo, sem noção de decência, sem respeito pela lei, sem apego à democracia e com um profundo desprezo pela vida dos cidadãos e uma subserviência criminosa em relação aos interesses financeiros internacionais. Há decência nos swaps? Na destruição da escola pública? Na humilhação dos pobres? Na destruição da universidade? No aumento do desemprego a que chamam flexibilização? Na destruição da administração pública a que chamam requalificação?
Não têm o sentido da decência? Não. Não têm, não querem ter e têm raiva a quem tem.
Parece uma caricatura? Parece. Mas isso é apenas porque o Governo de Passos Coelho é de facto uma caricatura, um excesso de mentiras e pouca-vergonha, uma organização de rapina que governa sem qualquer escrúpulo. Aquele conjunto é de facto caricatural. Portas é caricatural. Mota Soares é caricatural. Maduro é caricatural. Passos Coelho é caricatural como todas as pessoas sem escrúpulos são caricaturais. Porque é que as enormidades que diz não são denunciadas como as enormidades que são? Porque é que se acha aceitável este estilo de títere tiranete? Porque há uma reserva de boa vontade nas pessoas que lhes diz que as coisas talvez não sejam tão más como parecem e que as pessoas podem não ser tão desprovidas de princípios morais e de sentimentos como parecem na televisão. Há sempre pessoas que levam a sua magnanimidade até à estultícia. E os Passos Coelhos deste mundo contam com isso. Com isso, com os crédulos que podem convencer a continuar a votar em si e com os moluscos que os servem no Parlamento.
É assim que este Governo fora-da-lei pode continuar a roubar aos milhares de milhões os portugueses, roubando-lhes os bolsos, os empregos, as pensões, os ordenados, os subsídios, os serviços públicos que eles pagam, o património que construíram, as empresas públicas que são de todos, destruindo o progresso que se alcançou nas últimas décadas apenas para poder enriquecer ainda mais os muito ricos e para poder aniquilar os resquícios de soberania que possam teimar em existir, espalhando a miséria e reduzindo os portugueses à inanição e à subserviência.
O que temos é um Governo não de salvação mas de traição nacional. De traição às suas promessas eleitorais, às suas juras de tomada de posse, às instituições democráticas e aos compromissos da civilização que todos abraçámos, de traição ao povo, espremido e vendido barato para enriquecer os credores.
E, no entanto, os portugueses não se movem. Ou quase não se movem. As acções do bando de malfeitores que se apoderou do Governo com falsas promessas parece tão inconcebível que parece impossível que alguém as leve a cabo sem que haja fortíssimas razões de interesse público, ainda secretas. Imagina-se que deve haver aí alguma racionalidade. Talvez o que o Governo diz da austeridade seja verdade. Talvez seja justo matar os pobres à fome para pagar aos bancos.
Custa a acreditar que alguém possa ser tão desonesto, tão insensível, com um tal ódio aos mais fracos. Pensamos que isto não é possível, que a lei nos protege, que a filosofia nos protege, que a história nos protege, que a decência que temos o direito de esperar dos outros nos protege.
Mas a história está cheia de exemplos destes. Durante anos ninguém acreditou que Hitler quisesse exterminar os judeus, ninguém acreditou que Pol Pot tivesse dizimado um quarto da população do Camboja. E na sombra destes grandes ditadores sempre houve pequenos velhacos, pequenos capatazes como Passos Coelho ou Mota Soares que fizeram o trabalho sujo apenas para terem as migalhas da mesa do poder. Há racionalidade na acção do Governo, mas é a racionalidade do saque, do roubo descarado, da tirania da oligarquia. A decência está fora da equação.
Texto: “Público” 03 setembro 2013
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