obrigado dr. soares
Por Nuno Saraiva
A 9 de março de 2011, em pleno estertor do socratismo, Cavaco Silva apelava no seu discurso de tomada de posse como Presidente da República a um "sobressalto cívico" e à emergência de uma sociedade civil forte que afirmasse os seus direitos e fizesse chegar a sua voz aos decisores políticos.
Estávamos em vésperas daquela que viria a ser uma das maiores manifestações contra o anterior Governo, fora das baias seguras de partidos ou sindicatos. Nessa altura, naturalmente, ninguém rasgou as vestes, fez insinuações sobre a idade ou o estado de saúde ou sequer acusou Cavaco Silva de estar a apelar, incentivar ou a caucionar a violência.
Passados dois anos, e num contexto económico e social muito mais grave, em que nos permitimos ouvir impávidos um eurocrata responsável insistir na tese de que os salários ainda têm de baixar mais em nome da competitividade e do investimento, eis que cai o Carmo e a Trindade quando Mário Soares, na Aula Magna, constata o óbvio: "A violência está à porta". Podemos gostar mais ou menos do estilo, considerar a forma mais ou menos feliz, mas ninguém de boa fé pode vislumbrar nas palavras do ex-presidente um apelo à revolta armada ou à violência, mesmo que, noutras ocasiões, até tenha havido maior evidência de que era esse o sentido das suas opiniões.
Aquilo de que fala Mário Soares é das consequências de uma política da inevitabilidade, de pensamento único em nome do empobrecimento, da indiferença de um governo acólito das doutrinas da chamada "destruição criativa" de Schumpeter, do capitalismo selvagem e sem regras que deixa um rasto de desemprego e devastação económica, do desespero de quem já não consegue pagar as contas ou pôr comida na mesa para dar aos filhos porque quem governa se ajoelha, obediente e submisso, perante os credores, indiferente à angústia de um povo inteiro. Em síntese, do que se trata é de afirmar que há limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos.
É às desigualdades e assimetrias, injustiças e sofrimentos vários que aqueles que são vítimas de uma crise que não provocaram estão a sofrer que Soares se refere. Diz o povo, na sua imensa sabedoria, que não há pior cego do que aquele que não quer ver. E só por autismo ou crença fundamentalista na narrativa ideológica que nos está a ser imposta se consegue não vislumbrar o barril de pólvora em que estamos sentados.
Como é óbvio, em democracia não há lugar a revoluções ou a tomadas do poder pela força. Creio, firmemente, que é esta a convicção de todos aqueles que compareceram na Aula Magna, respondendo ao apelo de Soares, em defesa da Constituição e do Estado social. Como acredito que é também este o sentido da exortação apostólica, "A Alegria do Evangelho", do Papa Francisco.
A denúncia do Sumo Pontífice contra a "nova tirania" do capitalismo sem limites, que conduz à desigualdade e exclusão social, geradoras de "violência" e causa de "uma explosão" inevitável, não foi feita, que se saiba, num encontro de esquerdas. O apelo aos políticos para que garantam a todos "trabalho digno, educação e cuidados de saúde" e aos ricos para que partilhem a sua fortuna" não foi desferido, que conste, em nenhuma assembleia de revolucionários. A convocação de valores humanistas do género "tal como o mandamento "Não matarás" impõe um limite claro para defender o valor da vida humana, hoje também temos de dizer "Tu não" a uma economia de exclusão e desigualdade. Esta economia mata", não foi produzida com qualquer intuito violento.
Foi, isso sim, a expressão plena dos mais elementares princípios da doutrina social da Igreja, abandonados, ao que parece, por uma pseudodemocracia cristã portuguesa que se limita a encher a boca com tais postulados e a exibir a caridadezinha quando, ao domingo, vai à missa bater com a mão no peito.
O que é trágico é que estejamos confrontados com um vazio e torpor tais - de Belém não se conhece hoje qualquer apelo - que seja necessário recorrer a figuras como Soares e outros que se inquietam, que, na pena de alguns idiotas, "podem ter tido um grande passado mas vivem o drama de não ter futuro", para defender aquilo que é fundamental em qualquer democracia: os valores da dignidade humana.
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