mãos sujas
Por Sérgio Lavos
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Sim, as coisas podem sempre piorar. Sempre. Hoje, passando os olhos por um jornal nas bancas, vi a notícia: "pai atira-se a um poço com filho de dois anos por causa de dívidas". Nos últimos meses, as notícias, apesar de passarem despercebidas, têm saído a um ritmo regular. Quem é do Porto sabe que os casos de suicidas na ponte da Arrábida têm aumentado. Por todo o país, multiplicam-se as histórias. Nos jornais, são recorrentes as denúncias de especialistas: aumentaram as depressões, o desespero, o suicídio. Neste momento, deverão ser poucos os portugueses que não conhecem de perto casos dramáticos. Patrões que não conseguem pagar aos seus empregados e, não sendo desprovidos de consciência, de humanidade, sofrem mensalmente com o acumular de dívidas e com a impossibilidade de assumirem os seus compromissos; desempregados de longa duração que perderam o subsídio, imersos numa angústia sem fim, sem verem qualquer saída - a maioria dos desempregados com mais de quarenta anos dificilmente poderá emigrar; famílias que viram o seu rendimento reduzido a uma pequena parte do que era há dois anos e que não conseguem pagar prestações da casa, do carro, das creches dos filhos. Pessoas que nunca viveram acima das suas possibilidades, nunca pediram dinheiro para irem de férias, nunca comeram bife todos os dias, nunca tiveram mais do que aquilo que os avanços da democracia portuguesa, o agora cinicamente execrado Estado Social, conseguiram trazer: mais bem-estar, mais igualdade, uma muito mais viva dinâmica social, que permitia que mesmo quem tivesse menos recursos tivesse acesso à saúde, à educação, a férias gozadas longe de casa.
De cada vez que volto à minha faculdade - a FCSH da Universidade Nova de Lisboa - vejo à hora de almoço uma fila de estudantes, de marmita na mão, estudantes à espera de poderem utilizar os micro-ondas. Quando me tornei aluno universitário, há vinte anos, vindo de uma aldeia, só o pude fazer devido ao sacrifício dos meus pais e porque tinha a ajuda de uma bolsa. Mas conseguia pagar a senha diária de refeição, que tinha (e continua a ter) um preço simbólico. Agora, constato que nem para isso muitos estudantes têm. E há cada vez mais alunos a abandonar as faculdades. Comprometemos assim o futuro do país mas sobretudo retrocedemos dezenas de anos, até um tempo em que apenas quem era mais rico podia tirar um curso universitário. O que a geração dos meus pais, a geração de Abril, conquistou, está a ser desbaratado sem dó nem piedade.
Podemos culpar a troika, a UE, a Alemanha - os cínicos defensores do Governo já adoptaram essa linha de defesa, como se em tempos Pedro Passos Coelho não tivesse dito que se identificava plenamente com o programa da troika e que queria mesmo ir além do tinha subscrito (e foi: em 2011 era necessário fazer um ajuste de 4000 milhões de euros e o Governo fez 9000 milhões, começando aí o descalabro). Mas quem está a decidir o futuro do país, quem não se opõe às politicas de destruição da pátria tal como a conhecemos, não é a troika, não é Merkel: é o Governo. É o Governo que decide manter metas irrealistas para o défice - 5% em Portugal comparando com os 7,5% previstos para a Irlanda; é o Governo que mantém intocadas despesas como as das PPP's, cortando em apoios sociais quando as pessoas mais precisam deles; é o Governo que aumenta os impostos sobre os rendimentos singulares mantendo intocadas as mais valias financeiras e o património; é o Governo que corta pensões, corta reformas, corta na Saúde, corta na Educação, acaba com o complementto de solidariedade para as pensões mais baixas ao mesmo tempo que continua a injectar dinheiro no BPN e a recapitalizar a banca. O Governo fez escolhas. Essas escolhas levaram-nos a uma espiral recessiva, a um desemprego galopante, ao crescimento brutal da pobreza. O Governo faz escolhas. Essas escolhas estão a levar a um tal estado de devastação que serão precisas décadas para a economia voltar a recuperar. O Governo escolhe o mais forte em detrimento do mais fraco, escolhe a banca e os especuladores da nossa dívida em vez das pessoas que é suposto servir. Pedro Passos Coelho, ao afirmar que está a ser feita a "selecção natural" das empresas nacionais, admite que a política implementada pelo Governo que dirige visava o que está a acontecer, a destruição regeneradora. Esquece-se que essa destruição afecta as pessoas. Afecta os estudantes que abandonam os estudos, afecta os jovens que têm de emigrar, os velhos que deixam de poder ajudar filhos e netos porque vêem as suas pensões drasticamente reduzidas, afecta os pais e as mães de família que deixam de poder pão na mesa para os seus filhos. Pedro Passos Coelho, ao ter feito as escolhas que fez, tornou-se responsável pela vida dos milhões de portugueses que neste momento estão a sofrer. Tem as mãos sujas. De sangue. E dessa culpa ele nunca se poderá livrar.
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