deo gratias, um conto de halloween
Tudo se terá passado numa manhã de nevoeiro. É isso. Façamo-la brumosa e tétrica, para que a acção fique mais tensa e o mistério se adense, para que o antro do torpe crime se pareça com um desses becos mal afamados, poisadoiro de rufias e feculências, palco de raptos e violações, de gritos de prazer e pânico na noite escura, de navalhas enfiadas na liga, afiadas como as línguas de quem as maneja, mágoas e águas podres a inundar valetas, imundície a entupir sarjetas.
Eu e mais três ou quatro cúmplices penetrámos
sorrateiros na cozinha da escola, escura e sem vida. Da humana, que de outras nos estávamos a aproximar a passos largos. O vento uivava pelo corredor. A chuva açoitava as vidraças impregnadas de sebo sujo. A humidade ensopava as paredes enegrecidas. O cheiro era fétido, fénico e bedum em infausto enlace. Sombras da cor do pez abatiam-se sobre nós como espectros chocarreiros a mangar do nosso medo maior, o medo de mostrar medo, não há pior ferrete do que o ferrete de mariquinhas. As baratas corriam livres, livres e buliçosas, tantas como nunca tinha visto, diligentes viuvinhas em cortejo de mordomas à Senhora d’Agonia ou em romagem de saudade pelo Dia dos Fiéis Defuntos. Moscas e varejeiras, merdívoros jubilosos porque a esses repasto é coisa que não falta, cruzavam
os ares em acrobacias de festival aéreo, trasladando bacilos, bactérias e espiroquetas vá-se lá saber de que escorralhas e que estrumeiras para que lábios, que bocas, que línguas. E, num caldeirão ao lume, borbulhava matéria informe. Não um estrugido, um estufado, aquilo cheirou-nos a esturro, devia ser o baço, a figadeira, o bucho, talvez um pernil gorducho do Amândio que não punha os pés na escola há uma semana, para mais e não para menos, acamado, era o que se dizia mas nós não acreditámos, afrontado pela tosse convulsa o menino coqueluche, o menino coquete, o pivete de luxo, todo ele artimanhas e manigâncias, tão versado em tramóias de bufo, velhacarias de burlão. Era ele, sim, era ele, o infante infame tinha acabado de recolher à última morada, à casa do irmão mais velho, à do diabo em pessoa. As freiras, recuperado o juízo, fizeram-no responder em juízo, compeliram-no a pagar pelos seus delitos enquanto andava cá por cima, mais vale um pássaro na mão, justiça célere, justiça certeira, não me venham dizer mais que ela é cega, ainda que tivesse sido levíssima a sanção, branda a punição, cozer em lume brando não é o mesmo que assar, é outro asseio, havia de ter outro sainete sucumbir na fogueira, os cabelos a arder como caruma em tempo quente, os olhos a estrelar como ovinhos de manaquim em sertã incandescente, a pele a crepitar, a encarquilhar e estalar, a torcer-se e contorcer-se e retrair-se como lascas de tinta numa parede em chamas, a carne a fervilhar e a mirrar em silvos fumegantes, uma patuscada de horrores, imolação de danados, matança de malditos. Melhor teria sido uma pira purificadora, essa é que teria sido pena sem pena, mas a acção a decorrer diante dos nossos olhos pasmados era reparação bastante, mais vale um pássaro estrafegado na mão, o Amândio foi parar ao caldeirão convertido em João Ratão, papa ou rato tanto se dava como se deu ao papa-ratos sem asas, ao papa-missas sem sotaina, pois se sempre fora um sacana o desgraçado, desengraçado tunante de vida airada, vida airosa como poucas, curta como se vê.
E o facalhão a escorrer sangue, os despojos a escorrer sangue que jaziam sobre a mesa a escorrer sangue não deixavam margem para dúvidas, a lei é dura, acima de tudo se for a das Sagradas Escrituras, mas se é dura também é justa. Sangue, sangue e mais sangue, aluvião de plasma, glóbulos e plaquetas num festim de vampiros sitibundos. E nós, eufóricos, tínhamos que celebrar a boa nova, o medonho achado na cozinha mórbida. Roubámos, éramos quatro ou cinco, roubámos umas quatro ou cinco amoras cada um, não mais, juro pelas alminhas, das mais carnudas, encarniçadas, tentadora perdição de estripadores de polichinelo, necrófagos de opereta, verdugos de fantasia, nosferatus de um dia só.
sorrateiros na cozinha da escola, escura e sem vida. Da humana, que de outras nos estávamos a aproximar a passos largos. O vento uivava pelo corredor. A chuva açoitava as vidraças impregnadas de sebo sujo. A humidade ensopava as paredes enegrecidas. O cheiro era fétido, fénico e bedum em infausto enlace. Sombras da cor do pez abatiam-se sobre nós como espectros chocarreiros a mangar do nosso medo maior, o medo de mostrar medo, não há pior ferrete do que o ferrete de mariquinhas. As baratas corriam livres, livres e buliçosas, tantas como nunca tinha visto, diligentes viuvinhas em cortejo de mordomas à Senhora d’Agonia ou em romagem de saudade pelo Dia dos Fiéis Defuntos. Moscas e varejeiras, merdívoros jubilosos porque a esses repasto é coisa que não falta, cruzavam
os ares em acrobacias de festival aéreo, trasladando bacilos, bactérias e espiroquetas vá-se lá saber de que escorralhas e que estrumeiras para que lábios, que bocas, que línguas. E, num caldeirão ao lume, borbulhava matéria informe. Não um estrugido, um estufado, aquilo cheirou-nos a esturro, devia ser o baço, a figadeira, o bucho, talvez um pernil gorducho do Amândio que não punha os pés na escola há uma semana, para mais e não para menos, acamado, era o que se dizia mas nós não acreditámos, afrontado pela tosse convulsa o menino coqueluche, o menino coquete, o pivete de luxo, todo ele artimanhas e manigâncias, tão versado em tramóias de bufo, velhacarias de burlão. Era ele, sim, era ele, o infante infame tinha acabado de recolher à última morada, à casa do irmão mais velho, à do diabo em pessoa. As freiras, recuperado o juízo, fizeram-no responder em juízo, compeliram-no a pagar pelos seus delitos enquanto andava cá por cima, mais vale um pássaro na mão, justiça célere, justiça certeira, não me venham dizer mais que ela é cega, ainda que tivesse sido levíssima a sanção, branda a punição, cozer em lume brando não é o mesmo que assar, é outro asseio, havia de ter outro sainete sucumbir na fogueira, os cabelos a arder como caruma em tempo quente, os olhos a estrelar como ovinhos de manaquim em sertã incandescente, a pele a crepitar, a encarquilhar e estalar, a torcer-se e contorcer-se e retrair-se como lascas de tinta numa parede em chamas, a carne a fervilhar e a mirrar em silvos fumegantes, uma patuscada de horrores, imolação de danados, matança de malditos. Melhor teria sido uma pira purificadora, essa é que teria sido pena sem pena, mas a acção a decorrer diante dos nossos olhos pasmados era reparação bastante, mais vale um pássaro estrafegado na mão, o Amândio foi parar ao caldeirão convertido em João Ratão, papa ou rato tanto se dava como se deu ao papa-ratos sem asas, ao papa-missas sem sotaina, pois se sempre fora um sacana o desgraçado, desengraçado tunante de vida airada, vida airosa como poucas, curta como se vê.
E o facalhão a escorrer sangue, os despojos a escorrer sangue que jaziam sobre a mesa a escorrer sangue não deixavam margem para dúvidas, a lei é dura, acima de tudo se for a das Sagradas Escrituras, mas se é dura também é justa. Sangue, sangue e mais sangue, aluvião de plasma, glóbulos e plaquetas num festim de vampiros sitibundos. E nós, eufóricos, tínhamos que celebrar a boa nova, o medonho achado na cozinha mórbida. Roubámos, éramos quatro ou cinco, roubámos umas quatro ou cinco amoras cada um, não mais, juro pelas alminhas, das mais carnudas, encarniçadas, tentadora perdição de estripadores de polichinelo, necrófagos de opereta, verdugos de fantasia, nosferatus de um dia só.
Gostas de amoras? Vou dizer ao teu pai que já namoras!, galhofávamos numa cantata desafinada de pequenos sátiros, numa paródia de mafarricos, enquanto as devorávamos e tingíamos de encarnado dentes, lábios, cara e o uniforme de escola fina, teso de goma e disciplina.
Estaríamos ainda hoje a estoirar de felicidade não fora um grito, agarremo-nos uns aos outros com as mãos suadas e a pulsação em correria desenfreada, tivéssemos nós mais idade e tinha-nos dado o tanglomanglo, não fora o berreiro da irmã Clemência que atroou, aterrador, pelo corredor da morte.
Gatunos! Gatunos!, clamava desalmada, desalinhada, desaustinada, com tições no lugar dos olhos, pilões no lugar das mãos, maçarico no lugar da boca, iracunda, fera e feia e fel, as garras fincadas nas presas, presas como torniquetes às nossas orelhas que, desde esse dia, e aos anos que isto lá vai, nunca mais foram as mesmas, falo por mim que às minhas ainda lhes sinto os lóbulos a estalar de dor a cada repelão. E, não se dando por vencida, que dos fracos não reza a história e nem se sabe se vão para o céu, a irmã deu-nos tantas ou tão poucas que bateu o seu próprio recorde em número de reguadas martelejadas por minuto. Desancou-nos até mais não poder, até nos arrancar pele e lágrimas, a espumar secreções que de naturais nada tinham, essa é que é essa, e a baldear injúrias que nunca deveriam ter saído de tão pia boca:
Badamecos! Bandalhos! Pulhas! Piolhosos!, disse isto e disse mais, que palavra puxa palavra e, atrás de palavra, palavrão vem.
Postos no pátio do recreio ao relento e à chuva, expostos como ladrões nessa espécie de Gólgota renascido, não almoçámos, não assistimos às aulas, não jogámos à bola, não saltámos ao eixo e, do mal o menos, não rezámos o terço. Depois de cumprida a penitência, transidos de frio, a tiritar de medo, fomos para casa munidos de um auto da ocorrência, lavrado pelo próprio punho da irmã Clemência, onde se narravam os factos com virulência e exactidão, acharia qualquer um que tivesse lido o libelo e feito vista grossa a uma ou outra inverdade a enodoar as orações, as gramaticais e as outras, as jaculatórias murmuradas em cavaqueio com Deus Nosso Senhor pela hora das novenas.
E foi assim que, de um dia para o outro, Deo Gratias, me livrei do retiro das azedadas. Os meus pais, honra lhes seja feita, não quiseram que voltasse ao colégio nem um dia mais, embora não tenha escapado a um responso da sua parte e a irmã Clemência, da parte deles também, a um envelope lacrado comunicando a decisão de cancelar a minha matrícula no depósito de meninos encurralados. Como apêndice, juntaram algumas malaguetas, sete ao todo, uma para cada dia da semana, com a recomendação de que fossem ingeridas em vez das pastilhas para a ressaca, mastigadas primeiro, engolidas depois como se de hóstias se tratassem. Se preciso fosse, para as ajudar a descer pelo esófago e auxiliar a digestão, deglutidas com uns golinhos de aguarrás ou álcool desnaturado, ácido prússico também servia.
Para que a minha irmã, rematavam os meus pais na carta, a minha carta de alforria, possa desinfectar a cavidade bocal e as santas entranhas esquivando-se assim, ainda vai a tempo, aos inenarráveis pavores do covil de Satanás.
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