o funeral de abril e os coveiros de belém


Passados 37 anos de ver concretizado o sonho da libertação dos portugueses voltei a sonhar. Não nos moldes da minha infância esclarecida e participativa, nem da minha adolescência, nem da minha juventude, nem de como, já homem, reivindicava a manutenção da democracia e liberdades conquistadas à custa de muitas vidas, de muitas torturas, de muita repressão, de muitas misérias, fomes e maus tratos, de muita exploração, de imensas injustiças impostas por um regime ditatorial de quase meio século. Há 37 anos o derrube desse regime foi factual. Caiu estrondosamente graças ao passado tenebroso que nos foi imposto e a que jovens massacrados por uma guerra colonial velha de 13 anos souberam dizer e fazer BASTA! Fui um desses jovens, como tantos. E o povo veio atrás, soltou-se. Com cravos selou a obediência aos capitães de Abril e ao espírito e luta dos antifascistas que por décadas sucumbiram nas masmorras da polícia política somente por lutarem por justiça, pela liberdade e pela democracia.

E o sonho veio a noite passada, invadindo agradavelmente a minha privacidade. Abraçado ao meu ressonar, às voltas e reviravoltas a que habitualmente só assiste a enxerga. Sonhei. Sonhei que estava a fazer um discurso em Belém, hoje, nas comemorações bafientas do Palácio imoralmente ocupado por Cavaco Silva, um presidente eleito por uma vergonhosa e minoritaríssima quantidade de portugueses eleitores que ao que parece também não o queriam... Mas que foram nas suas loas.

E lá estava ele, o Cavaco. Tenebroso, sinuoso, manhoso, perigoso, hirto, fixava-me a uns metros do palanque dos discursos da cerimónia onde ocorreria o funeral do 25 de Abril. A seu lado e atrás, um magote de seus pares e mais ou menos seus iguais perfilava-se a procurar posição confortável para as suas nádegas gordurosas nas cadeiras fofas e anatómicas. Uns quantos (poucos) assistiam com semblantes tristonhos por terem a consciência de que ali se estava a oficializar o Funeral de Abril.

Expulsei o catarro, não usei a água que estava ao dispor dos oradores no palanque e que serviria para limpar a garganta - nada me garantia que não tivesse sido contaminada por vírus, maleitas e venenos made in Belém. Preferi tirar do bolso da jaqueta uma garrafa de água que tinha levado de casa e que sabia estar própria para consumo seguro. Depois de uns goles as cordas vocais acusaram a limpeza moderada da nicotina e dos químicos viciantes que a Tabaqueira e congéneres usam para nos tramarem, viciarem e roubarem a saúde e o dinheiro.


LÁ VAI DISCURSO

Sobranceiro, olhei a cáfila que esperava que o representante do povo botasse faladura. "Atenção." Disse... e lá comecei, de improviso - porque havia decidido não ler o discurso em papel que tinha escrito um dia antes e que tinha sido exigido apresentar à ardilosa Comissão de Censura Democrática. Fui dizendo:

Cambada de pulhas - salvo os que não são e estão aqui presentes em tão pequeno número.

Esta é uma oratória informal, improvisada, singela e honesta, de um representante do povo português que foi seleccionado entre milhares de portugueses anónimos que concorreram à solicitação dos parasitas acostados em Belém, boys e girls, desprovidos de coluna vertebral por via de uma maleita diagnosticada como sendo vasto egoísmo atroz. Muito obrigado por me terem seleccionado...

Pretendiam que viesse falar em nome do povo que têm tomado como carneiro, por ele assim se andar a comportar e vos permitir abusar desmedidamente. Vocês, grandes parasitas, esqueceram-se de que existem ovelhas negras e até ignoravam que eu sou uma delas. Pois se para aqui me selecionaram e quiseram, aqui me têm. Escusam de se estar a bandear nas cadeiras, a sentirem-se incomodados, porque ainda agora comecei o meu discurso como representante do povo. Se estavam à espera que pronunciasse as palavras escritas a aprovadas pela vossa Comissão de Censura, enganaram-se. Assumo que vos enganei. Afinal aprendi convosco a enganar-vos, a escrever uma coisa e fazer outra. Vocês, seus bandalhos, ainda fazem muito pior: dizem uma coisa, prometem mundos e fundos, e vamos a ver é tudo mentira. Fazem exatamente o contrário daquilo que dizem, que prometem. Mentem descaradamente. Manipulam tudo e todos em proveito próprio e da cambada que vos está anexa. Que convosco partilha as corrupções, as ilegalidades enfiadas em alçapões de leis feitas a propósito, as indecências, os roubos.

Estejam quietinhos e caladinhos que ainda nem vou a meio daquilo que tenho para dizer. Oiçam-me democraticamente e depois meditem no que digo e naquilo que ainda vou dizer, se acaso a vossa nova PIDE, com outro nome e engalanada de disfarces, não tiver a aleivosia de me fazer calar pela força, levando-me para as masmorras que antes experimentei e que felizmente não me conseguiram domar nem matar, muito pelo contrário.

Calem-se! Pouco barulho, seus democratas de pacotilha que só sabem olhar para as vossas barriguinhas e das cambadas de chulos esbanjadores que vos rodeiam! Isto é um discurso para o qual fui aprovado e convidado. Não é um debate. Oiçam o orador se realmente querem parecer democratas. Chiu!

Aproveito agora a vossa acalmia e silêncio reposto para prosseguir. Saibam que se se sentem agora ofendidos têm alguma razão. As verdades ofendem os que querem sempre parecer aquilo que não são. Qual é o chulo, o parasita, que reconhece o facto e que não estrebucha. Vão aos bares do Cais do Sodré e chamem putas às mulheres que andam ali a prostituirem-se todos os dias e todas as noites... Evidentemente que contestam e ficam ofendidas. O mesmo se está a passar convosco. Mordam o pó. Experimentem a sensação. Se acaso vos estou a ofender minimamente equacionem agora as ofensas que os portugueses não têm suportado vindas de vós. Vocês ofendem-se com as verdades ditas aqui em minutos, há minutos passados e mais uns quantos futuros - se não me calarem. E o quanto devemos nós, a esmagadora maioria dos portugueses, estar ofendida por vós com tantas mentiras pronunciadas ao longo de décadas?

O vosso silêncio sepulcral indica-me que nem nunca tinham pensado nisso. Para vós, nós, somos números. Somos gado manso de que podem abusar, espezinhar, enganar, manipular, usar, explorar. Com quem usam das maiores deslealdades e pulhices, antes, durante e depois das eleições. Falam em democracia apesar de não serem democratas - porque se não são justos e honestos jamais podem ser democratas. Aquilo que nos sobra da vossa doação, do vosso contributo, é uma mascarada de democracia deficitária, enganosa, que serve para vos dar tempo a fazerem fortunas enquanto nos espoliam a dignidade e o pão para boca. Enquanto nos privam de justiça, nos retiram os cuidados de saúde conseguidos após Abril de 1974, nos retiram o usufruto dos direitos humanos que em tempos em Portugal foram respeitados, que existiram e de que presentemente são uma pálida sombra.

Com legitimidade, a da verdade, a da constatação de vivências miseráveis em cerca de um terço dos portugueses, para cujo estatuto caminha a passos largos outro terço, vos chamo pulhas, parasitas, ladrões das nossas liberdades e das riquezas nacionalmente produzidas. Não fossem vocês esbanjadores e sarrafos desonestos, oportunistas, egoístas, aldrabões, safados, e agora este orador não estava a usar estas palavras, nem tinha de conter a revolta que guarda para que não vos atire aos cornos com a base pesada deste microfone. Decerto que haverá por aí, misturados convosco, uns quantos que adorariam dar-vos umas valentes cadeiradas nesses lombos anafados e cobertos de boas fatiotas, adquiridas à custa dos sacrificios que pedem ao povo.

Chiu, chiu, chiu... Vamos a calar. Protestos? Protestam só porque estou aqui a vosso convite e julgavam que vos ia dar os amens para que continuem a ser uns sacanas de primeira apanha? Oh! Desiludam-se! Se me deixarem acabar talvez haja por aí uns quanto que morram de raiva ao ouvir tanta verdade! Caluda! Que democratas são vocês? Posso terminar?... Posso terminar?... Não?... Mas o que é isto? Estou quê? Preso? Por difamação? Ah! Essa já esperava! Mas olhem que não me levam para as masmorras do Aljube na porra desse BMW de luxo que usam nos vossos parasitarismos, vão buscar a ramona ordinária e da porra do gado subsersivo. Já agora acordem o Silva Pais, o Salazar, essa cambada toda... Saibam que com a minha idade, com a minha vivência e com a esperança de vida que me resta, estou-me lá cagando que me prendam. Discurso interrompido. Discurso suprimido à força. Discurso terminado.

E foi aqui que eu acordei. Foi um sonho de Abril. Gostoso. No sonho, neste Abril, 37 anos depois, disse-lhes algumas verdades. Por isso se ofenderam. Como as putas, não lhes podemos chamar vigaristas, ladrões, algozes deste povo que se acarneirou.

Foi um sonho bom e honroso. Decerto demasiado pretensioso no capítulo de pessoalmente, eu, um simplório, ir representar o povo português. Mas valeu. Foi só um sonho. Sonhei, mas isso não invalida que não vá ainda parar às masmorras por alegada difamação. Dos pulhas não se deve, não pode, esperar outra coisa.

Bem acordado, assisto agora ao Funeral de Abril, encabeçado por Cavaco Silva, ladeado dos pulhas. Lá estão eles, com pompa e circunstância. Com palavras feitas à medida das ilusões que nos querem incutir e das convenienciass ocultas das matilhas que os ladeiam e que representam. Esta é a realidade. Não é um sonho mas sim um pesado.

Por António Veríssimo, blogue Página Lusófona

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