reponha-se a verdade (com as minhas desculpas por ter ajudado a divulgar o vídeo, santa ignorância a minha!)

E o burro fui eu!

Ignorâncias
Por Miguel Cardina

Circula pelas redes sociais um vídeo da Sábado que faz parte de uma reportagem junto de estudantes lisboetas do ensino superior. A revista esclarece tratar-se de uma peça entendida como um “teste básico” ao conhecimento de cerca de uma centena de inquiridos. O vídeo, porém, é uma recolha de algumas respostas e comentários que aparecem montados para provar o que estava definido à partida: que “os estudantes universitários” são uma cambada de ignorantes. Um dos entrevistados já esclareceu que pretende processar a revista e deu conta do contexto em que ela foi realizada: uma bateria de perguntas, apelando à memória imediata, com uma câmara em frente. Diz que falhou uma, num lapso posteriormente corrigido, e foi essa que passou. Não admira: era essa precisamente que servia o propósito prévio.

O vídeo é uma demonstração de sub-jornalismo que por si só não mereceria qualquer destaque. Acontece que ele tem circulado a grande velocidade em blogues e no facebook, provocando uma avalanche de comentários que oscilam entre a indignação e a chacota. E são essas reacções que merecem alguma atenção. Desde logo, para salientar o óbvio: o modo como o vídeo tem sido entendido - o espelho real, efectivo e transparente de uma dada realidade - mostra a profunda incapacidade de muita gente em ler de forma crítica e complexa as informações que lhe são disponibilizadas. O que ali está são “os estudantes universitários” e quem não sabe uma resposta de algibeira é um “burro”. Ignora-se a amostra, as condições em que se efectua o questionário, o saber a que se apela e o modo como a informação é construída. Neste particular, o pequeno vídeo ajuda-nos a compreender porque hoje em dia é a manipulação tão eficaz e indica-nos a extensão preocupante da iliteracia. 

Por outro lado, o vídeo tem subjacente a ideia de que o “saber” se resume a uma colecção de factos, datas e fórmulas que se sabem papaguear numa fracção de segundo – um pouco como os nossos pais e avós, mesmo que vivessem em Angola ou Moçambique, eram obrigados a saber de cor os nomes dos rios e caminhos-de-ferro da “metrópole”. É a cultura em versão “Quem quer ser milionário”, que um filme como Slumdog Millionairetão bem caricaturou. Claro que o saber é um processo complexo que não dispensa os factos, mas mais importante do que conseguir soltá-los num ápice é saber onde procurá-los e arrumá-los em sequências interpretativas.

Um outro aspecto que o vídeo nos mostra é a desclassificação social do “estudante universitário”, que ali aparece como alguém que “não sabe nem quer saber”. Talvez aqui fizesse sentido questionarmos desde logo o que se entende por “saber” (ou seja, o que sabe esta geração que não é ensinado e nem sequer conhecido pelos seus professores?). Mas sobretudo questionarmos a razão pela qual isto é possível com “estudantes universitários”. Deixo a pergunta em aberto. Estou certo, porém, que semelhante vídeo poderia ser feito com médicos, juízes, deputados, curandeiros, alunos de um colégio privado de elite, professores universitários, comentadores de economia ou prémios Nobel da paz. E era possível montá-lo de forma a obter resultados semelhantes com perguntas semelhantes. Mas seria mesmo possível?

A sociedade mudou muito nos últimos anos e isso reflecte-se no modo como o conhecimento é assimilado, trabalhado e disponibilizado. No Portugal dos anos sessenta, a universidade era sobretudo um espaço destinado às elites e os alunos tinham por isso backgrounds culturais prévios e sedimentados. A universidade conferia pois um determinado “capital simbólico” de que o aluno já estava potencialmente investido. Hoje, a massificação e mercantilização do ensino, as mudanças profundas na forma como se acede à informação e a perda de influência das humanidades transformou a paisagem. A isto devem acrescentar-se as mudanças no cânone cultural, um processo que, em termos globais, vem ocorrendo desde os anos sessenta. E, mais recentemente, o elemento descaracterizador da “despolitização”, emergente nos anos oitenta. Sim, porque é precisamente quando se afirma a ideia da sociedade é algo exterior, que “não nos assiste”, que a cultura enquanto saber enciclopédico – o tal “nada do que é humano me é estranho” – definha substancialmente.

Isso é duro e confronta constantemente os professores com o abismo do fracasso, mas esse sempre foi o desafio. E confronta-nos a todos nós com a vertigem da mudança, a tal que já assustava o velho do Restelo. Foi com espanto, por exemplo, que li o jovem que muito justamente se insurge contra o vídeo da Sábado afirmar que lê regularmente a Visão e todos os jornais gratuitos que consegue adquirir. Só aí me apercebi que devo pertencer à última fornada para quem a leitura de jornais - em papel, comprados diariamente, com os quais se cria fidelidade – assumia o aspecto de uma “oração matutina”, para utilizar uma expressão de Hegel. Mas, também aqui, o problema não são os factos, mas as interpretações que deles extraímos.

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