passei-me. passa.

Por Isabel Lucas

Escrevo a quente. Hoje estou irritada. Acontece. E ainda não foi nada comigo. Aconteceu quando alguém me pôs a mão no ombro e disse adeus, pedindo um livro para ler na fila dos desempregados. Alguém que conheço há muitos anos. Foi o golpe de misericórdia. É que no dia anterior, ao jantar, já tinha sabido que um amigo vai ter de emigrar. Há meses sem trabalho, as economias foram-se, a família vive com o ordenado da mulher e a vida ditou-lhe: sair ou faltar comida em casa aos dois filhos. Ele, engenheiro, vai sair. Dias antes, alguém que também conheço há muito tempo, contou-me que o marido ficou sem emprego e agora vivem com o salário de 600 euros dela. Ok. É a vida. É a crise. Mudam-separa um T1 que na verdade é um T0. Apertam-se. Felizmente não há crianças.

A minha mãe, que trabalhou a vida inteira em casa e uns anos numa empresa farmacêutica, foi pedir reforma. Não tem direito, disseram-lhe. A nada, continuaram, nem um tostão. Tem um marido que ganha mais de 700 euros e uma filha que não lhe há-de negar “um prato de sopa, pois não minha senhora?!” Pois não. Isto foi dito assim num balcão da segurança social à mesma pessoa que tem uma doença congénita rara e direito a transporte gratuito para o único hospital de Lisboa onde tratam a dita doença. Tinha. Agora paga 35 euros por viagem de ambulância porque não pode fazer os 40 quilómetros que a separam do médico de outro modo. É. Não se trata de uma urgência, explicam-lhe. Pois não, mas de ir ao único sítio onde a podem tratar da tal doença com nome esquisito. Já veio e já pagou. Ela ou quem pode por ela.

Há alguém que entregou a casa e se mudou para longe porque viu-lhe ser cortado o ordenado em trinta por cento. Aos 40 anos voltou para casa dos pais. Sim, alguém que conheço. Alguém que também conheço reza para a patroa não ficar na lista dos “a dispensar” numa empresa que anunciou despedimentos. Alguém que sei muito bem quem é, viu um rendimento complementar crucial ir à vida porque uma empresa faliu e quem lhe pagava o aluguer voltou para onde veio, sem emprego, agora corre ela o risco de ficar sem casa. É longe.

Estou chateada. Vejo os nervos à flor da pele de quem me rodeia, sinto o medo à minha volta como nunca senti. Cheira a comida onde não devia porque antes eram sítios onde não se comia. Há quem pergunte por lancheiras bonitas. Há que nos adaptarmos, não é? Pois. E duas senhoras da Emel caçam multas à porta do café. E sei de quem este ano ainda não ligou o aquecedor porque a conta da luz não permite luxos contra o frio. Haja cobertores.

Eu sei destas pessoas e de mais umas quantas. Números? Também toda a gente parece saber de alguém e as estatísticas da crise engordam. À custa de quem?

Estou irritada, perdoem o desabafo. E no meio de tudo isto parecem capricho os cabelos brancos de repente na cabeça de uma amiga. Foi a crise. O orçamento não resistiu ao envelhecimento e deixou de haver dinheiro para tintas. Encolhe-se os ombros. Está a ficar feio este país e eu estou um bocado chateada. Hoje.

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