o populismo conservador da "austeridade digna"
Por Daniel Oliveira
Muitos julgavam que a ascensão da direita liberal ao poder - que foi precedida pela conquista de uma hegemonia crescente no debate político - corresponderia a uma revolução cultural da própria direita. Doce ilusão. A nossa direita, sendo liberal no papel marginal que prevê para a intervenção económica e social do Estado (mas não na cobrança de impostos, o que não deixa de ser uma originalidade ideológica), é tão conservadora como sempre foi a direita portuguesa. Um conservadorismo autoritário, que sempre distinguiu o autoritarismo nacional das correntes revolucionárias fascistas e nacional-socialistas europeias, marca a sua cultura. Cristão, atávico, miserabilista e imobilista. Por mais voltas que demos, o autoritarismo conservador está no DNA da direita portuguesa.
Mais do que no discurso político, esta sua natureza revela-se no populismo mediático dos seus principais porta-vozes. E é apresentado como força modernizadora contra os pecados do Estado Social ou da Escola Pública, os dois temas preferidos desta gente. De Medina Carreira a um exército de economistas militantes, todos estão prontos a explicar a um povo pobre que este vive acima das suas possibilidades.
A este exército de moralistas vieram juntar-se os saudosistas da "escola de excelência" para a elite e da outra, para os restantes, que "ensina a ler, a escrever e a contar" e, na melhor das hipóteses, serve para formar bons trabalhadores. O trabalhador que "conhece todas as minúcias do seu trabalho, só pensa no desempenho da sua função, entusiasma-se com a boa ordem e o aperfeiçoamento dos serviços, é progressivo, é zeloso, é exato, não tem horas de serviço porque são todas, se é necessário e, sobretudo, tem o espírito de justiça e o amor do povo" Ou seja, "vive do seu lugar, porque vive para o seu lugar; é respeitado porque se respeita, sente-se digno porque se sabe útil, e mesmo no mais baixo da escala, nos mesteres mais humildes ele pode tocar a perfeição, segundo o pensamento de Junqueiro: pode ser-se sublime a varrer as ruas". Disse-o Salazar, poderiam hoje dize-lo, num estilo mais corriqueiro, muitos outros. Uma escola onde não se pensa, não se questiona e o prazer é visto como sinónimo de facilitismo. Porque é para a obediência e para o sofrimento que devemos preparar o povo.
Em relação ao Estado Social, tornou-se comummente aceite que os serviços públicos se destinam apenas aos mais pobres. A racionalidade do Estado Providência, complexa mas responsável por meio século de crescimento económico e paz na Europa, é substituída pelas virtudes cristãs da caridade. Os apoios do Estado são vistos como favor, que os seus beneficiários devem agradecer, e não como direitos.
O reforço do Estado repressivo em substituição do Estado Social - que o facto do Ministério da Administração Interna ter sido o único que viu o seu orçamento aumentado ilustra - e a confusão que se lança na opinião pública entre protestos e motins completam o edifício discursivo deste conservadorismo renovado na hora da crise.
É também este espírito bafiento que encontra nos "sacrifícios" a salvação contra a modernização "insustentável" do País. Que vê na crise uma oportunidade de redenção. Há, no discurso do momento - que comentadores e jornalistas repetem, porque a maioria se limita a fazer isso mesmo: repetir o discurso hegemónico de cada tempo -, mais do que um pragmatismo perante as dificuldades, um ascetismo doutrinário. E ele está especialmente presente nogrande herdeiro cultural do miserabilismo ordeiro do Estado Novo: Aníbal Cavaco Silva.
"A crise que atravessamos é uma oportunidade para que os Portugueses abandonem hábitos instalados de despesa supérflua, para que redescubram o valor republicano da austeridade digna, para que cultivem estilos de vida baseados na poupança e na contenção de gastos desmesurados". A "austeridade digna", como uma oportunidade para abandonar "hábitos instalados", dito no País mais desigual da Europa, onde a maioria dos portugueses vive com menos do que é necessário para as despesas básicas, é o discurso do elogio da pobreza que marca a história da nossa direita no século passado. Ele nunca morreu. Apenas ficou à espera desta "oportunidade" que a crise lhe deu.
O populismo conservador que esta crise veio acordar é populista porque sabe que encontrará receptividade numa larga maioria de portugueses. Sobretudo nos que vivem de forma mais aguda os sacrifícios que são uma "oportunidade". Cinquenta anos de ditadura conservadora criaram uma cultura nacional. A da resignação, antes de mais. Os famosos "brandos costumes", um mito sobre a natureza portuguesa, alimentado pela propaganda salazarista, era fundamental para o ditador se manter no poder. Esse elogio à nossa bovina mansidão está de volta quando se preparam para destruir quase tudo o que fez, apesar de todos os erros, este País avançar um pouco.Todo o discurso ideológico não dispensa um discurso moral. E os que estão a operar a maior transferência de que há memória de rendimentos do trabalho e de recursos públicos para o sistema financeiro também precisam deste mito.Nada como um povo ordeiro perante uma "austeridade digna" para seguir em frente com este assalto final.Assaltados e humilhados, sentir-nos-emos dignos, porque úteis, mesmo no mais baixo da escala.
Sobre o roubo do subsídio de férias e 13º mês a funcionários públicos e reformados que recebam mais de mil euros - cerca de um milhão de "ricos" - e o orçamento que é uma confissão de incompetência e estupidez, escreverei amanhã, na edição em papel do "Expresso".
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