prosopopeia

Por Luís Rainha
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O ser humano sente-se seguro quando julga entender o mundo. Sobretudo ao enfrentar os seus terrores: os relâmpagos passam a obra de um deus irado, a inépcia para a vida transfigura-se em maquinações da “sorte madrasta”. O que comunga a nossa dimensão de gente pode sempre ser apaziguado, castigado, subornado.

O povo assusta quem gostaria de o domar. Por isso se esforçam para lhe amenizar a escala, dando-lhe rosto de quantidade entendível. Não há noite de eleições sem homilias sobre o que “o povo português decidiu”. Engano: não existe isso do “povo”, português ou alhurês. Existem sim indivíduos, com decisões e inclinações individuais que depois se agregam em eventos colectivos.

Quando o tal “povo” parece inclinado a fazer coisas que nos assustam, damos-lhe anatomia de hidra, com uma cabeça dedicada ao bem e outra empenhada em maldades várias. Em manifestações que incluem violência, pilhagens ou apenas resistência a quem manda, há sempre uns “manifestantes bons” (a maioria) e uns “arruaceiros” (os que merecem porrada). Em S. Bento ou em S. Paulo.

Novo engano. Não somos formigas, talhadas à nascença para papéis monocórdicos. Como indivíduos, temos por vezes a mania da liberdade. Hoje, posso acreditar que a voz basta para me fazer ouvir. Amanhã, uma pedra da calçada talvez me pareça um bom megafone.

Mas o desespero e a fúria ante a injustiça são contagiosos – um dia ainda acordamos face ao nosso pior pesadelo: um povo “mau”, esquecido dos seus “brandos costumes”. Era bem feito.

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