a miséria moral da caridade, das políticas que a promovem e das organizações que a praticam

Por Nuno Serra
http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/

Vale a pena ler na íntegra a recente notícia do Público sobre o caso de uma mãe, em Sesimbra, que perdeu a ajuda alimentar por se queixar de ter recebido leite fora do prazo, para uma bebé com seis meses. Por mais insólitos que sejam os detalhes deste episódio, ele traduz, muito mais do que se possa pensar, o padrão de actuação das organizações privadas de solidariedade social e, sobretudo, os arranjos institucionais que potenciam este tipo de situações e nos quais repousa a florescente economia política da caridade.

Já não se trata apenas da ideia, latente, de que «para quem é, bacalhau basta». Isto é, a percepção mais ou menos subconsciente, de técnicos e dirigentes, segundo a qual «o pobre» é uma espécie de cidadão naturalmente diminuído, pela sua condição e perante os que o «ajudam», nos seus direitos e dignidade. Tal como já não se trata apenas do desequilíbrio de poder que se estabelece e que cunha, de forma indelével, a relação entre organizações da «sociedade civil» e seus beneficiários, e que impede que muitos casos, como o da mãe de Sesimbra, cheguem ao conhecimento da opinião pública. Isto é, a subordinação, explícita ou tacitamente imposta, que levou Andreia Branco, durante algum tempo, a não reclamar pelo leite fora de prazo, para «não parecer pobre e mal-agradecida». Como já não se trata somente das consabidas discricionariedades, subjectivismos, despóticas arbitrariedades e sobranceiros julgamentos morais, que impregnam as práticas assistencialistas, reforçadas nos últimos anos com o bolor salazarento da «sopa para os que são pobres» e da caridadezinha.

O dado novo, mais relevante, é o do incentivo e total legitimação política desta cultura retrógrada e moralmente desprezível de intervenção social, que se quer hegemónica. Como? Dispensando estas organizações de qualquer espécie de escrutínio e do cumprimento das mais elementares regras de política social pública (incluindo a dignidade e a qualidade das respostas), ao mesmo tempo que são despejados, sobre elas, abundantes recursos orçamentais. Muito para lá - sublinhe-se - dos recursos que foram retirados às famílias, no âmbito dos apoios que até aqui recebiam, com acompanhamento técnico, através do RSI ou do CSI. Bem vindos pois à «indústria da pobreza» de Isabel Jonet, que contribui para que o Estado «não se meta demais em coisas em que não deve» e onde a «a caridade vale mais que a solidariedade», pois «é amor (...) e serviço». Como pôde aliás constatar a mãe da bebé de seis meses, Andreia Branco.

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