não deixem que vos roubem os sonhos
Gérard Castello-Lopes |
Por Baptista-Bastos
Poucas circunstâncias fazem prever o que nos pode acontecer. No entanto, há sinais, porventura escassos e pouco nítidos, que ajudam quem estiver atento. Sei umas coisas destas coisas, e aprendi que não há nada que se consiga sem luta, e que não há luta sem sofrimento. Venho dos bairros pobres e do tempo em que os miúdos como eu jogavam à bola descalços, ou com umas sandálias que os nossos pais mandavam capear com restos de pneus. Os pés feriam-se com pedaços de vidros de garrafa, com puas ou com pregos enferrujados; as sandálias tinham de durar pelo menos dois anos. Havia apenas magras formas de enfrentar o destino: resistir ou abdicar dos sonhos. Resistir seria tentar aprender com leituras nas bibliotecas operárias ou escolares; abdicar era seguir o fadário das oficinas, das fábricas, do trabalho penoso de oito, dez e mais horas, ou entrar na gandulagem: roubar, assaltar, agredir para sobreviver.
Recordo-me de o meu pai a avisar: não permitas que te roubem os sonhos. Quis ser toureiro, pugilista, aviador. No fundo desejava fugir da tristeza viscosa daquela miséria. Dei nisto: num curador de frases, num cuidador de palavras que serão sempre as dos outros. O meu pai morreu à minha espera, assim como a minha avó, conhecida pela Palhaça. Um dia destes hei-de contar a história destas esperas, que contêm algo de sobressaltante e de misterioso. Um dia destes. Os meus filhos sabem--nas. Os meus netos têm de as conhecer.
O Velho Bastos era tipógrafo, construtor de jornais, levemente anarquista, grande jogador de póquer e de burro americano. Amava o ofício, com a paixão de quem não sabe fazer outra coisa. Na oficina do Diário Popular colocava um rolo de papel atado no abdómen, para não sujar as calças de tinta, e transformava os caracteres tipográficos em qualquer coisa de grandioso. Suava em bica e era um homem feliz, porque sabia a importância gloriosa do seu trabalho. Aos sábados ia com os seus camaradas beber e petiscar nas tabernas da Mouraria, onde o vinho procedia directamente do lavrador. Numa dessas tabernas, um papagaio gritava: já pagaste, sacana?, quando os clientes saíam.
Poucos conseguiram escapar àquele crisol de infortúnio. Que foi feito do Descasca Milho? E do Asdrúbal, cujo nome tínhamos dificuldade em soletrar? E do enfermeiro Baltazar que tratava das doenças venéreas que contraímos nos bordéis de Alcântara, do Bairro Alto e do Benformoso? Já foram, adiantando-se? O tempo revoluteia, e nada, ou quase nada é o que foi. A não ser a fome, o desespero, a desventura de viver que regressaram, num tumulto inclemente e perseverante. Reconheço que sou um senhor caturra, um pouco chato e invadido por múltiplas incertezas. Mas não deixo, não posso deixar de repetir as recomendações do Velho Bastos: não permitam que vos roubem os sonhos. Podem roubar-vos tudo. Os sonhos é que não.
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