unidos como os dedos da mão

Um dia, tudo isto terá passado. Um dia, todo o pesadelo que temos vivido será apenas uma recordação dolorosa que tentaremos encaixar numa lógica qualquer. Os historiadores estudarão, perplexos, os tempos em que a democracia foi suspensa e o Estado deixou de ser uma pessoa de bem para se tornar num escroque. Os nossos filhos, os nossos netos ouvirão, incrédulos, as histórias verdadeiras que lhes contaremos, sobre a forma como direitos já conquistados há décadas pelos nossos avós e bisavós e consagrados nas tábuas da lei fundamental tiveram de ser novamente disputados, arrancados a ferros de algozes disfarçados de economistas. De como, em pleno século XXI, fomos obrigados a ocupar escolas e hospitais e fábricas e padarias e supermercados e campos e casas, porque nos haviam tentado — e em muitos casos conseguido — roubar a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação. De como tivemos de deitar muros abaixo e de construir pontes onde já só restavam fossos. De como abolimos fronteiras e demos as mãos aos que, do outro lado, apenas aspiravam a uma vida digna. De como erigimos uma terra sem amos e resgatámos os nossos sonhos. E saberão que foi por eles que o fizemos, por eles e por nós, porque ansiávamos pelo sal e pelo mel, porque nos tinham tapado o sol e secado a terra, porque já não aguentávamos ver as nossas vidas por um canudo, por mil canudos, sem os quais afirmavam nada valermos, mas que, após dura obtenção, só nos garantiam o direito a emigrar, a exilar-nos.

Um dia, tudo isto que passamos será passado, marca, cicatriz. Não conseguirão fazer-nos esquecer, mas transformaremos as nossas dores em árvores de fortes raízes. Penduraremos os recibos verdes em paredes antiquíssimas de museu e contaremos aos nossos netos que um dia, há muito, muito tempo, os que mandavam neste país quiseram condenar-nos a pagar impostos sobre dinheiros que nem sequer ganhávamos. Que quiseram deixar-nos à míngua, fazer-nos pagar por bens que eram nossos, que depois de destruírem o que produzíamos nos fizeram comprar a outros todos os víveres de que precisávamos para sobreviver. Que nos quiseram matar à espera de tratamentos nos hospitais, que tornaram o saber num luxo incomportável, que afastaram as nossas crianças das escolas, que acabaram com os caminhos de ferro e com os comboios, que limitaram as redes de transportes públicos, enfim, que tudo fizeram para que deixássemos de nos divertir, de sair à noite, de ir ao teatro e ao cinema. Que puseram aqueles de nós que tinham empregos a trabalhar por dois, por três, por quatro e que despediram os outros, de forma a que os primeiros caíssem de exaustão e os segundos de frustração, de desânimo e de isolamento.

Contar-lhes-emos como um dia fomos obrigados a abolir pela segunda vez a escravatura, pois tentaram convencer-nos que era normal trabalharmos para aquecer, para fazer currículo, tendo de provar uma vez e outra e outra o nosso mérito, as nossas capacidades, enquanto outros tudo tinham, muito embora ninguém percebesse muito bem de onde lhes vinha a fortuna. Explicaremos aos nossos netos que aos pais deles foi roubada parte da infância, porque, sorrateiramente, um bando de malfeitores mascarados de especialistas nos conseguiram durante algum tempo persuadir que termos casa e carro e telemóvel e dinheiro para acampar no verão e ir ver a neve no inverno era um luxo ao qual não nos podíamos dar, porque éramos pecadores e criminosos, embora não nos conseguíssemos lembrar o que raios poderíamos ter feito de tão grave para que os nossos filhos merecessem tal castigo. E eles espantar-se-ão e perguntarão como foi possível que nos sujeitássemos, tão pouco tempo após a sua conquista, a perder direitos tão fundamentais como o direito a trabalhar e a viver no país onde nascemos. O direito a simplesmente querermos ser felizes. 

E não saberemos o que responder-lhes. Porque na verdade teremos nós próprios dificuldade em perceber como chegámos nós um dia ao ponto a que chegámos. Mas saberemos sim que um dia dissemos basta, que um dia, com toda a força e veemência da nossa razão e da nossa vontade exigimos o que é nosso. E nos erguemos, já não como rios, mas como marés, como mares, como oceanos de certeza. 

Nesse dia, sairemos das nossas casas aquecidas e mostrar-lhes-emos os caminhos que desbravámos juntos: caminharemos pela República, da José Fontana à Praça de Espanha. Desfilaremos nas Avenidas que são da Liberdade e desembocaremos de novo nos Terreiros que são do Povo. Com eles, entoaremos Grândola Vila Morena, duas vezes senha, duas vezes sonho, e as lágrimas brilharão nas nossas vozes e os versos ecoarão nas nossas memórias como ecoaram um dia nas escadarias e corredores dos Passos Perdidos, sob o olhar embargado dos polícias que só desejavam poder connosco cantar. Recordaremos o 2 de Março, o 13 de Outubro, o 15 de Setembro, o 12 de Março e de novo o 1º de Maio e o 25 de Abril, uma vez e outra e outra ainda, um dia, a chorar de alegria, de alívio precoce e intranquilo, com a certeza de que todos os invernos vão dar à primavera e de que os homens que dormem acordam sempre um dia. Um dia...

Myriam Zaluar
http://queselixeatroika15setembro.blogspot.pt/

Em 1971, para encerrar o meu primeiro disco, Os Sobreviventes, escrevi uma canção com uma das letras mais curtas: «Aprende a nadar, companheiro, que a maré se vai levantar, que a liberdade está a passar por aqui. Maré alta maré alta maré alta». Às vezes o menos é mais.

Estávamos então em pleno marcelismo, e digo-o com letra pequena porque era uma versão já semi-inerte do fascismo. E no entanto, havia ainda uma polícia política, agora com três letrinhas apenas, DGS, que se dedicava às mesmas nobres actividades da PIDE sua mãe. Vigiar, prender, torturar, nada de novo. Havia uma guerra colonial que se arrastava pelos campos minados de África, campos imensos sem fim à vista nem esperança de solução. E muitos mortos e feridos e enlouquecidos. Havia censura de peneira fina, e havia a emigração dos pobres, uma peneira de furos largos a deixar fugir o melhor de nós.

E no entanto a liberdade estava a passar por aqui. «O solo que pisamos é livre, defendamo-lo» foi o que pensaram e fizeram muitos resistentes, novos e antigos. Havia um velha adivinha que perguntava: «Qual é a altura do Salazar?» E respondia-se: «É a altura de se ir embora». O mesmo valia para a sua herança e os seus descendentes. Era altura de se irem embora.

Foi nesse conjunto de pensamentos e acções que se chegou à luminosa manhã do 25 de Abril. Vim então de longe, como muitos de nós, para ver e acreditar nos meus olhos e em todos os meus sentidos. E para cantar pela primeira vez no centro do redemoinho de uma maré alta onde todos pudemos vir à tona e navegar à vista longínqua.

Passados todos estes anos, sabemos como o país está em maré intencionalmente esvaziada e sangrada, e assim estará nos tempos mais próximos, aconteça o que acontecer.

Mas não interiorizemos o medo escuro nem o conformismo pardo. O presente tem «o acesso bloqueado»? Cabe a nós encontrarmos novas chaves, novos atalhos, novas formas activas de o usufruir. Queremos as nossas vidas, sim, por difícil que seja habitá-las neste presente sombrio.

O solo que pisamos é livre, e desde há muito terreno libertado. Defendamo-lo.

A liberdade está a passar por aqui.

Sérgio Godinho
http://queselixeatroika15setembro.blogspot.pt/

O medo faz parte da minha vida.

Desde pequena que a falta de liberdade me assusta. O não ter espaço para a minha voz e para os meus movimentos. O medo do escuro no preconceito, na desilusão, na falta de harmonia. Na solidão. São medos que, com o tempo, tenho vindo a aceitar como condição para viver esta vida.

Mas ter medo do estado é coisa pouco bonita. É coisa feia. E é coisa que veio ocupar espaço a mais no meu lado negro, como uma inevitabilidade. É o que agora sinto. Não como menina pequenina mas como mulher que sonhou com uma vida aqui, onde há história dos meus pais, dos meus avós e dos meus amigos.

O medo que a bondade e a justiça não existam de todo e que a crueldade, a frieza e os números ditem os afazeres no meu país. O fazer desfazer. O desfazer pessoas. 

Tenho medo que a tristeza nos assole de vez. Que as vozes esmoreçam por falta de forças. Que os movimentos se toldem por amarras perversas. Que nos isolemos e que o amor não chegue. 

Que estado é este? Um vento forte que derruba as árvores e as casas, de Norte a Sul, que não pede licença e leva as sementes para fora dos campos? Que põe montanhas fora dos seus lugares e que tapa as vistas com destroços? Que estado é este? Para onde é que vai tão apressado? O que restará? E parece tão perdido. Vazio.

Este estado não me representa. Não me representa como cidadã e pessoa. Não tem o meu orgulho nem compreensão. Este estado envergonha-me porque os seus valores não se encontram com os meus. Este estado que se desculpa com o estado a que as coisas chegaram. O estado dos bons meninos cumpridores que eu não consigo desculpar.

O que me ilumina é saber que somos muitos. É perceber que a dor que, deste lado sentimos, é sentida na pele e não num papel. É real. Faz mossa e entristece. E isso faz com que se cante, que a voz soe e que os movimentos se libertem. Calar o medo. Calar o medo. Calar o medo.

Rita Redshoes
http://queselixeatroika15setembro.blogspot.pt/



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