a liberdade, essa força de bloqueio

Por Nuno Ramos de Almeida

O Tribunal Constitucional considerou ilegal o projectado despedimento sem justa causa de trabalhadores da função pública. Como assinalaram os juízes e foi sublinhado neste jornal pelo director, Eduardo Oliveira e Silva, tal despedimento punha em causa a independência da administração pública. No dia em que os sucessivos governos puderem despedir trabalhadores sem nenhuma razão válida, vão substituí- -los por boys da cor partidária. Em vez de termos uma função pública para produzir serviço público para todos, vamos ter um gigantesco aparelho partidário para garantir a eleição do chefe de turno. A medida tornaria todos os funcionários contratados a prazo, com o emprego dependente do agrado de um qualquer comissário político governamental.

O ministro Poiares Maduro veio recentemente apelar a uma interpretação da Constituição adequada aos tempos de crise em que vivemos. O que contaria não seria a lei que lá está escrita, mas a necessidade de executar a política de austeridade ditada pela troika.

O governo acha que mais importante que uma qualquer Constituição é a sobrevivência do Estado, que só pode ser garantida executando sem demoras este programa de austeridade. Os juízes deviam perceber que vivemos numa espécie de estado de excepção, e que todos os chamados "direitos adquiridos" pelas populações, inscritos na lei fundamental da democracia, devem inclinar-se perante um suposto "interesse comum" que o governo de Passos Coelho se encarregará de definir. Nessa sábia cogitação, o executivo declara que salários, reformas e serviços públicos podem ser cortados à talhada, mas os ruinosos contratos com os grandes grupos económicos que deram lugar aos enormes buracos das parcerias público-privadas e dos swaps são sagrados e para honrar.

Num passe de mágica passamos a cidadãos sem direitos e sem Estado democrático: o governo pode acabar com todos os compromissos sociais e contratos que assinou connosco e acabar com a separação de poderes que garante o controlo independente do poder executivo e a existência da democracia. Por seu lado, os juízes passam a ter de actuar, devido a esse suposto "interesse comum", a mando do executivo e dos credores da troika.

Ao tornar os contratos com os cidadãos uma coisa que pode ser rasgada e a suposta salvação do país pela austeridade algo que está acima da lei, o governo liquida o contrato social da democracia, e, como notou Pacheco Pereira no "Público" do último sábado, abre a porta a contestações que saiam do quadro democrático. "O vale-tudo para uns é infeccioso para outros", nota o antigo líder parlamentar do PSD.

Se a lei deixa de salvaguardar os contratos e as reformas, por que razão impedirá o confisco das empresas que lucraram com esta crise? Se deixa de haver respeito pelo Estado de direito pelo governo, por que razão quem contesta esta política deve respeitar o executivo?

Basta ler as notícias que dizem que "as multinacionais portuguesas deslocaram mais de 2 mil milhões de euros de lucros para a Holanda entre 2009 e 2011" e que "a riqueza das maiores fortunas em Portugal cresceu 13% no ano de 2012" para perceber onde se pode cortar para salvar o país.

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