o fabulador
Por Fernando Alves
Vamos digerindo as estatísticas do verão, a estação das cigarras: o número de despedimentos colectivos aumentou 74% até agosto; prevê-se que fechem 11 mil restaurantes, até ao fim do ano - com a correspondente perda de quase 40 mil postos de trabalho; o número de desempregados inscritos nos centros de emprego subiu 26% em Agosto; duplicou o número de casais desempregados; uma em cada quatro empresas adianta dinheiro aos trabalhadores, face a situações de absoluta emergência.
Com este quadro de fim de estação, um ministro fabulador decide recuperar Esopo: "Portugal", disse ontem Miguel Macedo, "não pode ser um país de muitas cigarras e poucas formigas". A mais conhecida das fábulas de Esopo tem servido de bengala a moralistas de diversa orientação. Durante a Revolução Francesa causticava os aristocratas. Noutros contextos, ela aponta a dedo os que são mais dados ao divertimento e não gostam de vergar a mola. Não se percebe muito bem que ela possa ou deva ser contada nas filas dos centros de emprego. Elas são um formigueiro de desespero.
Quando o desemprego e a crise social atingem níveis tão preocupantes não se percebe a quem possa servir esta advertência. Dita por um ministro habitualmente sensato, discreto e hábil como Miguel Macedo (a tal ponto que é dado como um dos possíveis substitutos de Relvas na pasta politicamente mais sensível do governo), esta frase não gera senão perplexidade e revolta. Ela explica por que é que o Houaiss define o fabulador como alguém que constrói versões mentirosas dos factos.
Pode contudo estar em marcha um aviso subliminar: somos uns madraços por não termos ainda alcançado os níveis de superação letã. Vale a pena ler na edição de Setembro da Courier Internacional uma reportagem publicada este verão no jornal La Vanguardia sobre a situação na Letónia. Obrigada, em 2008, a um acordo de resgate com a União Europeia e o FMI, a Letónia colhe os frutos de uma austeridade sem freio: um terço dos jovens emigraram, o PIB caiu 23%, os serviços públicos estão destruidos, os salários baixaram entre 25 e 30%, o desemprego passou de 5 para 20%. Ora este verão, olhando as formigas letãs, Christine Lagarde rejubilou. A Letónia, disse ela, "está a indicar o caminho à zona euro".
Fabuloso! Uso o adjectivo sabendo que ele pode ter o sentido de admirável, mas também o de obscuro.
Neste outono de formigas sem carreiro, e outras, muitas, em sentido contrário (terá o rumor cívico das manifestações sido entendido como sarau de cigarras?) proponho uma outra fábula de Esopo, "As pombas e o falcão".
Vendo-se as pombas perseguidas pelo milhano que as maltratava de quando em quando, e buscando como poderiam livrar-se, quiseram valer-se do falcão. Tomou este o cargo de as defender, mas começou a tratá-las muito pior, matando-as e comendo-as sem piedade. Vendo-se sem remédio, diziam: 'Com razão padecemos, pois não nos contentando do que tinhamos soubemos tão mal escolher cousa que tanto nos importava".
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