a vida é perigosa
Por Nuno Ramos de Almeida
O real primeiro-ministro para além de Massamá, o doutor Paulo Portas, produziu alguns considerandos sobre o papel pernicioso da utopia na história. Nada que assuste muito a dita cuja, que certamente fará, como qualquer ideia séria, orelhas moucas a sound bites parlamentares, mas não deixa de ser matéria-prima para um diário, que, como notava Manuel António Pina, estará amanhã, como todos os jornais, a embrulhar o peixe.
Portas defendeu que as utopias eram perigosas e que em política a falta de adesão à realidade sai cara.
Em geral, os dignitários da direita embirram com o desejo dos povos de não aceitarem aquilo que lhes é dado como inevitável, isto apesar de o nosso actual Presidente ter feito encomiásticos elogios a Thomas Mann pela escrita da "Utopia" de Thomas Moore.
Um perigoso subversivo, com a característica simpática de viver com duas gémeas, defendia que a prova do pudim está no pudim. De alguma forma, podemos ajuizar as vantagens do "realismo" contra a utopia vendo os resultados que esta política nos deu. Depois de mais de 30 anos de "realismo", temos Paulo Portas no governo, tivemos Miguel Relvas no executivo e fomos realisticamente comandados pelos políticos do centrão. Podemos dizer que, em resumo, uma quantidade de gente fez excelentes negócios, mas os portugueses só ficaram a perder: temos o país mais desigual e dos mais atrasados da União Europeia, com os gestores das grandes empresas mais bem pagos da dita cuja.
No final dos governos Cavaco Silva, ele próprio, olhando para o vale do Ave, reparou que "tínhamos empresários milionários com empresas falidas".
Os grandes frutos de décadas de "realismo" estão inscritos nas promissoras carreiras dos ministros que transitam alegremente dos governos para os grandes grupos económicos, com os quais negociaram chorudos contratos à conta dos netos dos contribuintes, dos filhos, netos e bisnetos destes.
O "realismo" de Paulo Portas significa pregar a aceitação daquilo que está, que tanto jeito lhe tem dado a si e aos seus.
No outro prato da balança temos a utopia e o irrealismo. Foram gerações de pessoas que eram pouco realistas que combateram durante 48 anos pela liberdade em Portugal. Seria para eles muito mais cómodo calar e comer. Mas assumiram decisões perigosas, foram irrealistas e ajudaram a conquistar a liberdade que hoje temos. No meio da noite da ditadura a liberdade não passava de uma utopia.
Dizem-nos os mercadores do templo em geral e os "realistas" portugueses em particular que tudo isso é metade da questão: a história está cheia de utopias sangrentas. Verdade. Mas foi dessa massa que nasceu tudo aquilo que de transcendentemente humano conquistámos. Sem excessos, paixões e entrega seríamos escravos. Foi de uma história generosa e por vezes sangrenta que se fizeram as revoluções, como a Francesa, que nos permitiram sonhar em liberdade, querer mais igualdade e fraternidade.
Orson Welles tem um diálogo fantástico, no início do filme "O Terceiro Homem", em que nos diz: os italianos tiveram guerras civis, os Bórgias e uma série de catástrofes, mas produziram artistas como Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Miguel Ângelo, Bellini e Tintoretto. Os suíços tiveram 500 anos de paz e inventaram o relógio de cuco.
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