mundo feio
Por Rosa Maria Martelo
Não sei dizer “até que ponto” as redes sociais amplificam as “frases menos felizes” das figuras públicas, embora me pareça que fazem ecoar de maneira significativa a irritação e a revolta que essas frases provocam. E também não saberia quantificar a desqualificação a que terá chegado a imagem das “elites” financeiras e políticas, ou o grau de tensão entre as classes sociais. Não sei quantificar, mas sei que tudo isso existe – e acima de tudo sei que as desigualdades aumentam todos os dias em Portugal. E sei que nessas frases, apontadas como “menos felizes” (não serão simplesmente “infelizes”?), ou pelo menos em muitas delas, o que revolta é precisamente a indiferença perante a desigualdade crescente da nossa sociedade. Desse ponto de vista, Fernando Ulrich foi paradigmático quando inquiriu: “Se os sem-abrigo aguentam porque é que nós não aguentamos?” Apetecia logo perguntar: “Nós, quem?” É que, gramaticalmente, aquele “nós” incluía o locutor, isto é, desdobrava-se num “eu+vós”; mas, simultaneamente, a condição socioprofissional de Ulrich excluía-o de “aguentar” o que quer que fosse de comparável com a vida de um sem-abrigo. É claro que seria possível pensar que o “nós” pretendia englobar os portugueses e Portugal, mas mesmo isso não invalidaria o que acabo de descrever – e a indiferença perante o aumento da desigualdade em Portugal manter-se-ia claramente audível naquela pergunta. Ou seja, o que o pronome “nós” nivelava, mas só gramaticalmente, era precisamente o que a financeirização da economia e o decorrente protagonismo da banca tem vindo a desnivelar: as classes sociais, que estão cada vez mais afastadas pela (má) distribuição da riqueza.
Portanto, as palavras não são irrelevantes na criação de desigualdade. Todavia, mais que criticar as “frases infelizes” de alguns protagonistas, interessa entender que, como mostra Doreen Massey, palavras como “cliente”, “consumidor”, “mercado” modelam quer a nossa visão de nós próprios quer a nossa visão do mundo e criam a ilusão de que o mundo é “isto” porque não pode ser outra coisa (o tal TINA neoliberal, o inefável “there is no alternative”). Parece-me bem mais grave a modelização que estes novos vocabulários estão a gerar do que propriamente haver uma senhora que fala das suas férias como “brincar aos pobrezinhos”. De resto, a senhora em causa pediu publicamente desculpa.
Vivemos cada vez mais numa sociedade concebida como uma espécie de arquimercado, no qual a transacção seria o paradigma de todas as relações humanas. As “frases infelizes” são um sintoma disto mesmo, e muitas vezes também resultam da ignorância cultural de quem supõe que só a economia e a técnica importam. Nos últimos tempos, os chamados pontapés na gramática por parte de figuras importantes da política nacional têm sido de bradar aos céus.
Em síntese, não são propriamente os pobres dizeres das frases infelizes que geram a revolta; é o mundo feio, desigual, ignorante, opressivo e inumano de que eles são o sintoma. Esse mundo desigual e injusto é que está a gerar cada vez mais revolta.
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