torpes canalhas

Por Baptista-Bastos

Não há dia em que o Governo não cometa uma nova patifaria aos portugueses, em nome de qualquer dicção que queira dizer: "interesse nacional." Estamos no domínio não só da pura malícia, como no reino dos mentirosos, que não sabem mentir porque se repetem, e dos incompetentes porque o são com malévola soberba. E também não há dia em que me não irrite. Sou um homem antigo, que fiz o que tinha a fazer, mas do que fiz ainda hoje me orgulho. Estes que tais, persistentes na destruição do que resta de laços sociais, possuem algum pingo de consciência e de relação com o outro?

São os privilegiados? Privilegiados de quê?, de terem mais dinheiro, de se passearem com altaneira arrogância e de produzirem afirmações que envergonham os homens de bem, como a daquele senhorito, banqueiro e tudo, que, interrogado sobre se os portugueses suportavam mais estas afrontas, respondeu: "Ai, aguentam, aguentam!"

Agora, o Governo vai acabar com o subsídio de viuvez, como se os sobreviventes fossem restos e os que foram embora não tivessem pago o preço de ter família e de a querer proteger além de tudo. Conheci viúvas de jornalistas, que tinham dado lustre e honra à palavra escrita, quando a palavra estava soterrada, aparentemente, só aparentemente soterrada, pela violência do mais forte, e essas viúvas viviam em penosas condições.

E ainda há dias tive conhecimento de que um grande escritor português, daqueles a quem a pátria deve a fisionomia da honra, nos últimos anos houve alturas em que não tinha dinheiro para pagar a luz. Em ambos os casos houve duas instituições que os socorreram: a Casa da Imprensa, nobre instituição, e a Sociedade Portuguesa de Autores, que não permitem o insulto e a ignomínia de haver novos Jaus, de mão estendida a pedir para o poeta. A propósito, lembro o poema Camões, de Sophia, que bem retrata o desprezo que os poderes demonstram pelos que representam os valores maiores da pátria: "Vais ao paço, pedir a tença/e pedem-te paciência."

É o que é: estes biltres que nos afogam em infortúnio e dor abusam da nossa paciência. Estamos cada vez mais pobres e eles iluminam a existência dos mais ricos. Não abrandam o aperto da tenaz, e os nossos velhos estão para aí, nos jardins, nas casas solitárias, abandonados nos hospitais, a morrer em susto, terror e mágoas.

Também soube, há dias, que um dos maiores hospitais portugueses, acaso da Península Ibérica, o Pulido Valente, está a ser desmantelado de pertenças essenciais, como processo de ataque, outro ataque sem descanso, ao Sistema Nacional de Saúde, idealizado pelo meu velho amigo António Arnaut, e pela mãe de Leonor Beleza, entre outros e outras. Impávido e sereno, o Governo prossegue na doutrina de reduzir o Estado ao mínimo, para atribuir o máximo ao sector privado.

Não tenho lido, na Imprensa, muitas reportagens sobre esta depredação moral, apenas justificada pela cegueira dos que, afinal, ficam na história como torpes canalhas. E a defesa deste projecto, que leva o nome de neoliberal, tem sido feita por indivíduos à procura de emprego ou simplesmente destituídos de estatura ética.

Perante estes e outros assaltos ao Estado Social, criado na Europa do pós-guerra, por sociais-democratas e democratas-cristãos, e que deu ao continente uma dimensão humana até então ignorada, a legalidade do voto torna-se fraudulenta, porque as acções não a legitimam, e o direito à desobediência e à insurreição torna-se num imperativo.

Em outras circunstâncias históricas, e em tempos de opressão terrível, nunca os escritores, os artistas, os jornalistas deixaram de se manifestar. Alguns, muitos, pagaram nas masmorras ou no exílio ou com a vida, o preço de querer ser livres. Sou desses tempos, quando Carlos de Oliveira proclamava, num poema belíssimo: "Não há machado que corte/a raiz ao pensamento." Não há. E bem podem os pequenos tiranos de hoje presumirem-se os vencedores de tudo. Não são.

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