contra a novilíngua

Por João Pedro Marques

Os que leram 1984 de George Orwell lembram-se certamente do termo novilíngua e do que ele significa: uma linguagem que para restringir ou a condicionar o pensamento utiliza as palavras de uma forma insólita, indo a ponto de subverter ou inverter os seus sentidos e significados. O principal lema do livro - "guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força" - ilustra perfeitamente esse efeito.


A direita ultraliberal que agora nos governa vai criando também ela uma novilíngua com o intuito de falsear a realidade, de "dourar as pílulas" que nos faz engolir, de induzir as pessoas a pensarem num falso carril, com falsas premissas e falsas conclusões, levando-as a aceitar como positivas coisas que são eminentemente negativas. Ainda há poucos dias, a propósito da decisão governativa de recalcular o valor das pensões que já estão a ser pagas aos ex-funcionários públicos, cortando cerca de 10% do seu montante, Marco António Costa, actual porta-voz do PSD, afirmou que essas pensões iriam ser "corrigidas" (sic). Trata-se de uma palavra perversa que deixa subentendido que o referido corte é positivo e justo, pois viria rectificar qualquer coisa negativa ou errada. Na verdade, aquilo que Marco António Costa apresenta como "correcção" é um mero atropelo das regras já estabelecidas, um confisco, uma quebra das obrigações do Estado para com aqueles pensionistas. Parece uma coisa sem importância, uma simples e inocente palavra, mas não é. E se esta fraseologia de Marco António Costa for reproduzida pelos seus pares e se vier a ser muito difundida pelos órgãos de comunicação social, terá um efeito branqueador das acções do Governo e dissolvente das memórias dos governados. Como afirmava o tristemente célebre mestre de propaganda Joseph Goebbels, se uma mentira for repetida mil vezes, tornar-se-á verdade. É nessa linha de raciocínio que os mentores ideológicos deste Governo jogam.

A perversão deste jogo já foi apontada por muitos. José Pacheco Pereira, por exemplo, fez dela um alvo recorrente da sua análise crítica. Mas é preciso prosseguir e ampliar o esforço de desmascaramento desta novilíngua porque é através da linguagem que este Governo tenta condicionar o nosso pensamento. É preciso, portanto, que nos esforcemos por mostrar aos mais desatentos que as lindas palavras com que os nossos governantes embrulham as suas decisões são em muitos casos, ideologia e propaganda no sentido mais primário e convencional dos termos, isto é, máscaras da verdade, para que, assim disfarçadas, as coisas violentas ou abusivas se façam passar por decisões justas e benéficas. Já falei sobre o caso "pensões corrigidas", mas há, infelizmente, muitos outros exemplos deste terrível exercício de deslizamento da linguagem. O mais cínico e desumano de todos é a apregoada "requalificação" dos funcionários públicos, que em lugar de ser uma maneira de melhorar as suas competências e a sua situação material é, na verdade, a forma de os pôr na rua ou de os colocar numa prateleira com um corte substancial no vencimento. Mas há também o "ajustamento" que equivale a "corte"; a "poupança", que não quer dizer aforro mas sim "não pagamento"; a "reforma do estado" que é sinónimo de "mais desemprego"; a "medida temporária" que significa, de facto, "medida definitiva"; etc.

Num mundo saturado de informação e de contra-informação, as pessoas perdem muito facilmente a memória dos factos ou, pelo menos, a dos seus detalhes. Se não for traduzida e desmantelada esta linguagem que distorce e perverte a verdade acabará por se impor subrepticiamente e, em breve, para a generalidade das pessoas, ficará apenas a versão oficial, ou seja, a mentira propalada pela ideologia do poder e mil vezes repetida.

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